Ainda que estivesse muito longe do desespero, suas necessidades fizeram com que Shizue sequer se colocasse para questionar o absurdo da situação. Tinha entrado ali não em busca de trabalho, mas para saborear uma refeição. E agora aquela fala cheia de maneirismos, exagerada demais em seus detalhes, mostrava que era esperada. Sentiu um frio na barriga, uma hesitação. Então é aqui que tudo dá errado?, pensou, mudando sua linguagem corporal sem perceber, tornando-se sutilmente mais arisca.
Ela viu a caixa e depois viu o que a aguardava num futuro próximo, pensativa. Imaginar que uma grande nação ou mesmo um dos vilarejos próximos tivesse se dado o trabalho de capturar ela, que até o momento não tinha feito nada além de pequenos trabalhos para um homem misterioso, parecia loucura. Mas ainda sim…
Contornando a mesa, buscou ficar de frente para a mulher, com a mesa entre ambas. Mas sequer teve tempo de perguntar os detalhes, pois ela havia desaparecido. Envolveu a caixa com as mãos e tentou deslizá-la sobre a superfície da mesa, para testar seu peso. Suspirou longamente, limpando a testa. Leu atentamente as instruções deixadas no papel, memorizando as partes importantes antes de guardar o bilhete num dos bolsos da camisa — de tão velha e manchada, a camisa estava beirando um tom amarelo-pastel. Shizue encaixou a caixa entre os braços, fazendo um pequeno esforço para posicionar ela com delicadeza em seu abraço.
Usou do ombro para abrir a porta do restaurante, mirando o horizonte na direção indicada pelas instruções.

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Por mais contraditório que fosse, Shizue sentia-se muito mais confortável e segura agora que estava a céu aberto. O deserto era sua morada desde que se conhecia por gente, portanto nada mais natural que isso acontecesse. O calor opressivo, o vento jogando areia e aquele equilíbrio característico de quem conhece toda uma vida sobre dunas. Nada gritava normalidade para ela mais que isso.
Certificou-se a cada pouco de que a caixa era bem envolvida por seus braços, lutando com o peso a início, mas agora mais acostumada. Subindo uma duna, aproveitou para olhar ao redor, vislumbrando o horizonte na direção que tinha sido indicava através das instruções, depois mirando por sobre os ombros, encontrando uma figura solitária acompanhada de um camelo. Vinha em sua direção, pelo que percebeu, embora a distância grande fizesse aquilo ser mais um produto de sua suspeito que um fato em si mesmo. Voltou a se virar para o caminho a frente dela, apressando o passo o tanto quanto podia sem comprometer a segurança da caixa e seu próprio equilíbrio. Mesmo não passando de uma suspeita, não havia motivos para se arriscar; Shizue era fraca demais, pessimista demais para acreditar que qualquer confronto pudesse ter um resultado positivo e assim evitaria ao máximo qualquer coisa que pudesse se colocar no caminho de completar sua missão. Tinha aprendido com as pequenas tarefas anteriores que pessoas misteriosas costumavam recompensar bem.
No caminho adiante, tinha vislumbrado um provável refúgio. Ela sabia que se estivesse sendo seguida, o camelo iria atrasá-lo. Não se preocupou em apagar seus rastros, pois tomando a descida da duna em direção a caverna que estava pela frente teria o vento e a gravidade para bagunçar seus rastros. Ainda mantendo o trajeto sugerido em mente, foi na direção da caverna, aproveitando o caminho para estudá-la, esperando que se aproximar dela fizesse o caminho de rocha dar lugar a areia, tornando mais fácil deixá-lo para trás se fosse necessário. Seu objetivo porém era apenas passar pela caverna, como forma de interromper o rastro, seguindo viagem. Shizue tinha vivido por tempo suficiente naquele deserto para saber que os perigos existiam entre os pequenos vilarejos; em céu aberto, apesar de ser onde mais se sentia segura, também era onde conhecera os perigos daquele lugar esquecido pelos deuses.

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O plano de Shizue não correu tão bem quanto ela planejou. Enquanto tentava usar a caverna para sua vantagem, escutou os passos à entrada da caverna, percebendo que realmente estava sendo seguida. Ela virou na direção do som, tentando disfarçar a surpresa, mas ainda mantendo toda atenção e força na tarefa de segurar a caixa e evitar que ela caísse. Depois dos passos, viu o homem que chegava com a espada empunhada, depois escutou sua súplica.
Um bebê. “Merda”, aquilo era ir longe demais em nome da própria sobrevivência, roubar um bebê, onde estava com a cabeça? Mas ao mesmo tempo… Ela sabia o que acontecia com gente como ela quando era pega, portanto se um ato vil como aquele fizesse parte de sua caminhada em busca de segurança e dinheiro, que assim fosse. Subitamente, sentiu-se mais confiante, embora não passasse de um subterfúgio para aplacar a explosão momentânea de incerteza dentro dela. Tomar uma atitude impulsiva e disfarçar isso como determinação foi a forma que encontrou de se confortar.
Quando estava prestes a fugir, ignorando o chamado, ouviu o choro vindo de dentro da caixa, tentando ao invés de segurá-la, como fazia até então, abraçar a caixa pelas laterais, a colocando contra o próprio peito para abafar o som. Não devia estar longe do destino, portanto colocou-se em movimento, mirando a saída da caverna. Concluir a missão e sobreviver era mais importante e por mais que roubar uma criança revelasse uma sensação desagradável, arruinar a própria reputação com quem quer que tinha lhe passado aquele contrato seria muito pior. Decidida, lidaria com o homem depois se ainda continuasse a persegui-la.

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"Ao menos uma boa escolha", resmungou, saindo da caverna para encarar novamente o deserto a céu aberto. Bastou as primeiras passadas para perceber a tempestade de areia, com o vento contra ela. Manteve a caixa pressionada gentilmente contra seu peito, agora não era uma questão de abafar o som e sim proteger a criança dos grãos de areia bombardeando contra a dupla. Saber o que levava na caixa, mesmo que não tivesse intenção ou remorso nenhum para devolvê-la, ao menos a fazia ter um senso de responsabilidade com ela, de cuidar para que chegasse são e salva na destinação final.
Conseguiu alcançar o vilarejo, protegendo o rosto durante todo o caminho ao pressioná-lo contra a parte de cima da caixa, pelo menos evitando a areia nos olhos. Estava próximas o suficiente para não se importar com o perseguidor de anteriormente, apenas apertando o passo. Até que chegou.
Suspirou pelo alívio de que tudo estaria acabado em breve e também pelas construções da vila oferecerem alguma proteção contra a tempestade, usando de pontos onde haviam prédios mais altos para parar e observar os arredores, procurado pelo nome do bar que tinha sido indicado nas instruções recebidas. Não foi difícil encontrá-lo, com um letreiro chamativo em cores vivos, pintado nele um osso de costela. Shizue repetiu o ritual de proteger seu rosto contra a caixa e proteger a caixa com o peito, até entrar, empurrando a porta com o ombro para abrir e usando uma das pernas para fechar.
Quando viu a mesma mulher de antes ali, foi até ela, ainda sem colocar a caixa no chão ou numa mesa, sem esconder seu descontentamento. "Da próxima vez, diga-me o que estou carregando", disse, fria. Ficou ali parada, emudecida, esperando seu pagamento, ainda segurando a caixa.

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A irritação de Shizue, mesmo que fosse aparente, não gerou efeito algum em sua contratante. Não somente parecia indiferente, como Shizue sabia que realmente estava. Seria o futuro dela? Tornar-se indiferente mesmo enquanto tirava crianças de seus pais?
Ela tentou afastar novamente o pouco de culpa que sentia pelo contrato. Ficou quase um minuto parada, mantendo a carranca, até que cedeu, se sentando como era pedido pela mulher. Deixou a caixa sobre a mesa diante dela, mais perto de si do que da mulher, embora soubesse que aquilo também não fosse gerar nenhum efeito sobre ela.
Deixou o dinheiro sobre a mesa, sem mover um músculo ou fazer menção de pegar até que viu um homem se aproximar e tirar a caixa da mesa, só então aceitou o pagamento. Mesmo quando falou para responder, tinha os olhos fixos no tampo da mesa, encontrando inevitavelmente os petiscos quando foram trazidos.

— Certo — disse, um resmungo em resposta ao fato de que a criança seria vendida como uma mercadoria. Era um exercício, se não se tornasse tão indiferente quanto a mulher isso lhe custaria sua sobrevivência.

— Não, nada demais — disse, agora desdenhosa, mas ainda seca, comendo os aperitivos o mais rápido que podia, para não deixar nenhum para ela.

— É tudo então?


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Shizue deixou o silêncio cuidar da atmosfera do ambiente enquanto a mão da mulher permanecia suspensa no ar. Depois de deixar ela esperando por alguns segundos, apertou sua mão, assentindo brevemente como sinal de que tinha entendido o aviso dela. Em seguida, retirou rapidamente sua mão da dela.
Naquele meio tempo em que não disse nem fez nada, Shizue aproveitou para tentar lê-la. Tentava fazer isso sempre que estava diante de alguém, um hábito desenvolvido depois de ser descartada pelo circo; procurando sinais na fala, na linguagem corporal — qualquer coisa que indicasse a iminência de um romper de laços. Quando não encontrou, satisfez-se em admitir que por mais que quisesse não tinha jeito para aquilo, só então prestando atenção para a tabuleta da madeira colocada diante dela, resgatando a explicação da mesma como retroativa na mente. Tentou gravar na memória os locais indicados ali, para visitá-los posteriormente não com o propósito dito pela mulher, mas para encontrar pistas a respeito dela e dos contratos que de fato poderia oferecer.
Se levantou, colocando a cadeira de volta ao seu lugar e deu as costas à mulher, saindo, fechando a porta atrás de si. De novo Shizue estava no deserto, livre sob o sol. Seria questão de tempo até que ela e Yuta criassem algo confiável o suficiente para que pudessem sobreviver de forma duradoura.

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missão concluida