O começo do fim.
Shizue tinha deixado, ou melhor, sido deixada pelo circo há muitos anos. Ela não os contava pois era uma memória dolorosa demais, apenas sabia quanto tempo se passou. Estava por conta própria há tanto tempo que era a única familiaridade que conhecia, ainda que recentemente a amizade de Yuta tivesse trazido de volta uma parte de si perdida anteriormente. Apesar de tudo, tornava-se mais fácil avançar sozinha, sem ter de se preocupar com o bem coletivo, como era falsamente pregado enquanto viajava com o circo — sua sobrevivência, ali no deserto impiedoso, era a única que importava. Tinha começado um caminho sem volta e percorrer o trajeto para limpar seu nome era mais difícil do que sujá-lo ainda mais, portanto não pararia mais.

Escalando uma duna íngreme, cobriu os olhos parcialmente com a mão, para fugir do sol, tentando vislumbrar as tendas pretas e brancas que se erguiam no horizonte distante. Ela as conhecia bem até demais para saber que não era o deserto pregando uma peça nela com miragens, nada podia ser mais real que aquilo diante dela. Viu-se atraída pelo circo, instintivamente colocando um pé após o outro para descer a duna e seguir na direção das lonas bicolores. Shizue pensou que se ao menos pudesse obter algumas respostas, ficaria em paz consigo mesma.

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No alto do céu, escutou o grito estridente de uma ave de rapina anunciando sua chegada até ela. O rasante acompanhado de um golpe quase a pegou desprevenida, forçando Shizue a se abaixar na areia, perdendo o equilíbrio e caindo duna abaixo, só parando quando a queda se transformava numa planície novamente. O choque da queda e do ataque repentino veio acompanhado da necessidade urgente de ficar de pé e alerta novamente, mas não houve um novo ataque. Ainda se levantando, ela enxergou a figura que se aproximava ao longe, cobrindo o rosto parcialmente com uma tira de pano, estendendo seu braço teatralmente para que o falcão prendesse suas garras ao redor dele. Mesmo sem poder vê-lo por inteiro, Shizue o reconheceu de imediato. Jinichi.

O falcoeiro caminhou muito calmamente até ela, assobiando, sem demonstrar preocupação nem intenções hostis, embora ela já estivesse de pé e com a postura armada defensivamente.

— Estava pensando em nos fazer uma visita? — A voz dele tinha tom de troça, assim como seus olhos.

Shizue estava no limiar entre manter a calma e atacá-lo, mas conseguiu se manter inerte, reprimindo a raiva.

— Que bom. E desculpe pelo falcão, ele atacou sem meu comando. Mas já que não quer me matar, devo lhe contar algo.

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Shizue o encarou como se tivesse desistido de súbito da calmaria, o matando com os olhos, mas depois arrefeceu novamente sua raiva, dessa vez permanentemente.

Jinichi, com o mesmo braço esticado que tinha o falcão, fez surgir na mão um pergaminho pequeno. Ele deixou cair habilmente e pegou com a outra mão, girando corpo de tal forma que o animal ficou parado durante o giro. Jogou de sua canhota o pergaminho na direção de Shizue, que o pegou.

— Recomendo que leia o conteúdo disto, vai te dar respostas — e vendo que ela continuava a fitar por sobre os ombros dele, para as lonas distantes do circo, continuou: — Esqueça o circo. Leia e concentre-se nisso.

— O que há no pergaminho? — perguntou, suspeitando de algum truque. Quando ele não respondeu, ela se arriscou e o desenrolou, percebendo que era estreito e curto, com letras miúdas.

Lendo o conteúdo, imediatamente soltou o pergaminho na areia, como se queimasse suas mãos.

— Uma declaração escrita por sua mãe, abrindo mão de você e a entregando para o circo. Sei que não é fácil ler. Seu nome, Shizue.

Shizue assentiu, sentindo o peso das palavras escritas. Uzumaki. Sentiu medo, mas depois sentiu-se mais confiante do que nunca, carregando nas veias o sangue antigo e poderoso da linhagem. Seria suficiente para sobreviver?

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Shizue respirou funda e longamente, encarando Jinichi emudecida, ainda digerindo a revelação. Apesar do fato em si, se perguntava porque ele revelava aquilo somente agora, depois de tantos anos.
Mas remoer o pensamento era inútil, afinal, sua mãe tinha deixado ela para trás, a vendido para o circo em troca de… nada. Aquilo não podia ser chamado de uma venda, Shizue tinha sido abandonada. Nada além disso. Jinchi voltou a falar.

— Ninguém além de mim conhece o segredo, sabia? Quando recebi você guardei a carta e o segredo comigo. Parentes distantes dentro de minha família tem um pouco de sangue Uzumaki, de modo que sei de algo que pode te ajudar. Acho que podemos dizer que você nunca vai voltar para o circo, não é?

Shizue olhou ele com um sorriso de esgar, afirmando com a cabeça. Voltar para o circo estava fora de cogitação. Agora ela percebia que o circo na verdade tinha sido o seu segundo abandono e não o primeiro. Saber aquilo fez com que ela tivesse a certeza de querer continuar sem vida limpando aquele passado, usando o poder de seu sangue para sobreviver junto de Yuta e quaisquer outros que encontrasse pelo caminho, compartilhando de sua visão pautada no agora.

— Portanto vou lhe dizer uma coisa então. Seu clã tem um poder comum, meu sangue Uzumaki é tão pouco que sequer vale de algo, mas você é por inteira, de pai e mãe. Correntes.

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Shizue o encarou de volta, com os olhos bem abertos, numa expressão de quem esperava a continuidade da fala — ele estava falando sobre um item?, ou, pior, correntes para prendê-la e a levar à força de volta ao circo, levando ao motivo da pergunta de anteriormente?

Ela estreitou os olhos, franziu o cenho e deu dois passos para trás, desconfiada.

A velocidade do falcoeiro foi mais rápida do que ela podia acompanhar. Ele a circulou e imobilizou ambos os braços de Shizue usando uma única mão, usando a outra que estava livre para segurar sua nuca. Começou a pressionar a nuca com força, movendo os braços imobilizados para cima, numa posição desconfortante, até que começou a doer e Shizue deixou escapar grunhidos.

— Nada pessoal, Shizue. Você vai entender n’um instante, apenas sinta um pouquinho mais de dor.

Ele continuou pressionar os braços dela a um ângulo doloroso para cima, empurrando a nuca para frente enquanto ela lutava com sua força débil para se soltar. Em meio a tudo isso, o falcão tinha subido e começado a voar, como se estivesse em patrulha.

Depois de tanto pressionar, das costas de Shizue irrompeu uma corrente solitária. Jinichi viu a tempo suficiente de soltá-la e se esquivar do ataque instintivo que ela tinha feito.

— Ah, era isso. Então você a tem.

Shizue precisou de um minuto inteiro para assimilar o que ele estava fazendo e não o atacou. A mudança em sua postura fez a corrente recuar naturalmente, virando uma espécie de tentáculo solto no chão.

— O que você fez comigo?

— Não fiz nada, isso é seu. Sua herança do clã Uzumaki.

No alto do céu, o falcão soltou um grito estridente e quanto ela ergueu o olhar para fitá-lo, Jinichi já havia desaparecido, junto do falcão. Tinha sido deixada ali sozinha para lidar e entender o que tudo aquilo significava.

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