Musica para leitura: "Dark Ambient Witchcraft Music" by Northumbria (Youtube)

Um mar de rosas estendia-se no quintal da moça, lutando a todo custo contra a névoa que envolvia a casa quase que como uma redoma, uma proteção espiritual contra todos os males. Nesse lugar idílico, uma casa isolada de todo resto, no lugar mais diferente do clima da aldeia, ostentava toda sua tradição e orgulho, como parte de um bem material duma família antiga. Sua imaterialidade, entretanto, jorrava por entre os bosques de árvores retorcidas que ficavam atrás, onde o horizonte não podia ser visto além de uns cinco palmos. A escuridão dava o contraste entre o lugar, com flores lindas e de perfume doce e o zumbido quase permanente vindo das árvores e do vento, que balançava os galhos como numa dança eterna, dando ritmo a um cronometro da brevidade, do sinistro que abatia aquela casa. Um senhor aguardava em pé, frente à porta; uma senhora sentava-se aos fundos da casa, tricotando, podendo ser vista por Senna; e uma menina, não mais que doze anos, agachava e riscava o chão com um galho que colheu por ali mesmo.

Quando aproximou viu os olhares deles em direção a ela com frieza. A pele pálida deles chamava a atenção e seus olhos escarlates davam a impressão de que eles já estavam mortos, apenas não tinham tomado consciência disso. Os cumprimentou com um singelo balançar de cabeça, não sendo correspondida nem pela mais ríspida mesura. Melhor assim, foi tudo que pensou, detestava o prologo a que tinha que se submeter ao ter que realizar missões, não tinha tato e animo para isso. Apontou para a menina e explicou o que tinha ido fazer, secamente, a menina olhou para os velhos e depois para Senna. Uma expressão de surpresa desenhava-se no rosto da menina que, além da pele pálida, parecia uma criança normal de sua idade. Senna delicadamente segurou a mão da menina e as duas partiram bosque adentro. À medida que entravam sentia a névoa tornando-se mais e mais densa, o frio e a umidade tornaram tudo ainda mais desagradável, a menina respirava ofegante, cada vez mais ofegante, mas Senna não se importou. Ela continuou andando até que a menina de súbito parou, caindo no chão de joelhos com lágrimas escorrendo de seu rosto.  

— Eu... Eu não consigo... Estou... Cada vez mais fraca e cansada... Eu só queria... Me desculpa é tudo culpa minha.

Senna não mudou a expressão em seu rosto, estava entediada daquilo, mesmo aquela missão básica que forjou para a menina — ir até o bosque e coletar flores de uma árvore que a ninja tinha previamente visto — tinha se provado uma tarefa impossível. Senna não pensou, entretanto, que apesar daquilo ser uma missão Rank D, para uma pessoa de corpo tão frágil como aquela menina, era uma missão de Rank S. Continuou olhando para ela e não disse uma palavra, apenas falou:

— Vamos voltar você falhou na missão.

A menina olhou para a mulher com as bochechas coradas, lágrimas e catarro escorrendo por todo o seu rosto. E disse apenas “não”, levantou-se e continuou a caminhar, respirando cada vez mais intensamente, sentindo as pontadas em seu pulmão, como lanças terríveis, porém, persistia e, a cada passo, a dor aumentava, a visão embaçava e a audição se perdia, era uma criatura decadente, como a maioria das árvores retorcidas que estavam ali, já tinha morrido há muito tempo e aquele monte de ossos ambulantes não era mais do que um cadáver, um zumbi querendo provar alguma coisa para si que ninguém no mundo — nem mesmo Senna — no final lembraria.

Fizeram todo o percurso e a menina caiu no chão, desmaiou. Senna pegou aquele saco de nada, colocou nas costas sentindo a frieza do corpo e voltou para a casa da menina. Os avós sequer se preocuparam com a menina, apenas indicaram o quarto dela e pediram para deixá-la, que enfim ela poderia descansar. Senna recebeu o dinheiro e foi embora.


Mais tarde, foi relatar a missão que recebeu ao seu superior imediato, antes, porém, que pudesse dizer qualquer coisa, ele falou:

— E então, como foi realizar aquela missão para aqueles velhos malucos?

— Malucos?

— Sim, de acordo com eles a menina, filha de seu primogénito que morreu numa missão, está pra morrer e queria muito viver um dia como ninja, assim como os pais, que morreram em missão, acontece que ela morreu tem mais de uma semana, inclusive mandamos um ninja semana passada lá que não conseguiu cumprir a missão, pois não tinha ninguém, menina nenhuma, pelo menos... Bem, a não ser um caixão fechado que, quando ele abriu, viu o corpo mumificado da criança. Mas isso não é um tipo de gente que um ninja se preocupa. Crianças mumificadas, pelo que eu sei, não tem vontade.

Senna não quis entender nada daquilo, apenas entregou o contrato da missão cumprida e foi embora, nunca mais em sua vida comentaria sobre aquilo que “não” aconteceu.

Musica para leitura: "Dark Gothic Music of Old Ruins and Ancient Temples" Mix for Cryo Chamber (Youtube)

PERGAMINHO:

A primeira cena que a ninja viu foi a de pais chorosos, preocupados com o desaparecimento do menino. A mulher ouviu os relatos deles, tentando digerir o máximo de informações possíveis antes de sair em busca da criança. Não era, entretanto, uma boa investigadora, mas não deixou transparecer isso, afinal, era um caso rápido de ser solucionado. A chuva constituiu nesse primeiro momento o maior de seus problemas, seria companheira permanente dela, uma companheira gélida e barulhenta, diminuindo a sua moral. Listou algumas possibilidades de trajeto e partiu.

Caminhou morro acima, a casa dos pais, localizada próximo a um rio, submersa na névoa que escorria pela montanha, conferindo ao local pouca visibilidade para aqueles não acostumados. Provavelmente o pirralho tinha se perdido em meio às andanças. O solo duro, pedregoso, dificultava ainda mais a caminhada, tendo ravinas por quase todo o lugar, não surpreenderia se o menino tivesse caído em uma delas. Ao percorrer o caminho, sentindo o vento sobre sua face, a medida que chegava ao topo daquela montanha, lembranças de sua infância começaram a bombardear sua mente. Lembrou como subia a montanha dependurada a seu pai. Seus olhos começaram a embaçar, estava no topo, não sabia dizer quanto tempo passou, mas avistou ali de cima a casa, bem pequena, quase um ponto, iluminada por alguma coisa que não soube identificar. A oeste dali a aldeia escondia-se por entre uma nevoa etérea e, poucos quilômetros a leste viu uma montanha como aquela em que estava, seu antigo lar que não via a tempos.

— Senna! — sussurrou algo. Ao se virar viu a criança, olhos arregalados, vestes sujas de lama. Deu um passo e a criança deu outro para trás, amedrontada. Ela não sabia o que fazer para se aproximar, não tinha tato para isso! — Você já sentiu o mesmo — ouviu mais uma vez o sussurro, que logo desapareceu, como se algo estivesse na nevoa ou em seu subconsciente dizendo aquelas coisas.

— Estou aqui para ajudar você, papai e mamãe me mandaram...

Estendeu a mão e com muito custo abriu um sorriso, o menino aproximou-se, receoso, encostou-se às mãos frias da mulher e perguntou:

— Você está morta.

Senna puxou o menino e deu um passo para trás. Um lobo branco de olhos vermelhos estava a sua frente, caninos afiados, a fera pulou nos dois, a mulher projetou-se sobre o menino tendo recebido arranhões das garras afiadas da criatura, no entanto, não a mordeu.

— Pare! Ela veio me levar para casa! — disse o menino chorando. O lobo então parou, olhou mais uma vez irado para Senna, que caiu inconsciente sobre uma das ravinas, e correu vertente abaixo. Quando acordou viu o menino sentado, olhando para o seu rosto. Ele sorriu e ela, instintivamente, também.

— Vamos, vou te levar para casa.

— Posso me despedir do vovô antes?

Ela assentiu, os dois se ajoelharam em direção ao sol poente e rezaram cada um para aquilo que acreditavam.

[487 palavras]

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