Um demônio não é só a manifestação sólida da violência ou a antítese de Deus, mas é a negação da humanidade e, para negá-la, antes é preciso assumir a sua roupagem, seus trejeitos, sua delicadeza, para não revelar mais que um sorriso virginal, santo, a espera do primeiro beijo, da primeira comunhão, da menarca. Essa inocência pueril, a qual a jovem se lançava agora, tinha mais a ver com seu propósito do que constituía seu modus operandi. Distante de Konoha tudo era possível inclusive conseguir corpos, mas, antes disso, vê-los definhar aos poucos era um aspecto da sua realidade que transformava todo seu desejo em prazer, puro e simples, uma prazer realizado.

Ela segurava a mão do camponês que parecia preocupado com algo, pálido, como se tivesse acabado de ver um fantasma. Ela repousou a mão sobre a testa febril dele, fingindo preocupação, se aproximou de seu ouvido e disse em um tom afável:

– E então, o que mais aconteceu?

Aparência de Tomie:

Tomie, é claro, não usava sua aparência real, mas um rosto que havia roubado, de alguém que ela tinha encontrado em sua jornada. O rosto pertencia a irmã caçula daquele homem, que, tamanho seu nervosismo, não tinha como perceber a farsa. Verdade seja dita, Tomie estava irritada, o que era raro, não tinha sido ela a matar a moça, ela estava ali exatamente para descobrir o que estava por trás daqueles assassinatos. Tomada por uma curiosidade mórbida por corpos dilacerados, ela ia atrás, extraoficialmente, de qualquer relato que a levasse ao encontro de serial killers. Esse era, inclusive, o provedor de seus maiores orgasmos: fazer sofrer assassinos e pessoas que se julgassem numa posição de poder. Não, ela não se importava com os pobre e oprimidos e não agia em favor deles ou por vingança, de fato, até mesmo deixava os assassinos concluírem seus serviços, para ela, antes de tudo, os tais oprimidos eram menos que baratas e, por isso, precisavam ser esmagadas, extirpadas da sociedade sem nenhuma piedade e os criminosos selvagens, que não entendiam que o sofrimento é maior que a morte, eram crianças mal criadas que deveriam ser educadas.

– Uma mulher… irmã, não, eu não vou te contar se não você não dorme a noite.

– Você precisa me contar, para que eu possa me defender.

O homem observou o rosto de Tomie, ou melhor, de Fumiko, por alguns segundos, tocou nele, e seus olhos se encheram de lágrimas. Tomie quis muito revirar os olhos, detestava aquele sentimentalismo barato e não via a hora de acabar com aquilo.

– Tudo bem.

As palavras do homem foram bastante animadoras, uma mulher de cabelos brancos, aspecto selvagem, havia cruelmente matado um homem, Tomie colocou as mãos nos lábios, os pelos de seu braço eriçaram imaginando a cena descrita. Ela precisava muito ver a cena pessoalmente, mas, mais do que tudo, ela queria ver a assassina, descobrir o que uma mente degenerada como aquela queria. A violência pela violência não tem graça, pensava o demônio, é preciso criar meios mais criativos de tortura e de sofrimento, a morte, na realidade, é uma dádiva concedido pelos fracos dos misericordiosos, de maneira que seu animo, embora existisse, não era alimentado por grandes expectativas. Na pior das hipóteses, deixaria a mulher inconsciente e roubaria o seu corpo, talvez até pudesse usá-lo, assim como usava a de seu pai em atos claros de sadismo. Ou como usaria de sua ferramenta, Sakakibara.

Caminhou até o local, com a aparência delicada de Fumiko, aproximou-se da mulher, mantendo uma distância que julgava segura e observando de longe o corpo.

– O que aconteceu aqui, você está bem? – Fingiu.

Nem lhe passou pela cabeça que poderia estar numa encruzilhada, frente a frente com outro demônio.

Face a face com o demônio, seu coração palpitou, em descompasso, enquanto na sua garganta estava presa a ansiedade, que muito desejava cuspir. Tomie era um demônio, fria, calculista, sentiu aquela energia pressionando contra si e logo entendeu. O cão que ladra mais alto é o líder da matilha, um cão pulguento, decadente, sem as qualidades que ela tanto admirava estava a sua frente rosnando e, ela, para conhecer e ganhar a confiança do cão, aceitaria sua autoridade. Deixou aquele poder sinistro incidir sobre seu corpo, sacrificando, até mesmo, parte do que ela considerava sua sanidade. Caiu no chão com os olhos revirados, enquanto o vômito escorreu de sua boca, depois, seu corpo rompeu naquela poça. Para muitos aquilo seria o auge da humilhação, para Tomie, uma etapa fundamental para conhecer o outro.

– Por… – Não conseguia falar, as palavras estavam amarradas em algum lugar da mente e dos seus olhos lágrimas começaram a romper. Por dentro, entretanto, aquela risada sarcástica que sempre dava, seria uma jogada arriscada? Talvez, sim, talvez agora ela estivesse à mercê de uma assassina, entretanto, sua aposta estava no fato de que ela era sim, útil para àquela criatura.

– P-pare… E-

Mais uma vez tudo que viu foi uma luz, entregou seu corpo aquele martírio, conservando no seu interior o desejo de cortar aquele corpo e de possuí-lo. – Eu… Sei… Ko-Konoha. Fechou os olhos, sentindo a sua mente sendo violada pela técnica, até que começou a delirar, balbuciando palavras como “socorro”, “pare”, “alguém me salva”. Talvez estivesse mesmo desesperada, mas ela não se importava de olhar direto para o inferno, de ser consumida por sua chama, estava diante de um monstro? Não, não estava, estava diante de uma criatura decadente, mas que ainda parecia preservar alguns princípios morais e, embora assumisse que pudesse ter uma leitura errônea da mulher de cabelos alvos, tinha a certeza que, enquanto fosse útil, estaria a salvo.

Sua mente aos poucos foi retornando ao normal, de maneira que ela pensava:

“Hahaha tudo vai dar certo Tomie, em breve terei mais um corpo para brincar, sim, eu quero esse corpo, ele… ele é perfeito… Sakakibara, papai, hahaha, em breve vocês terão uma companheira…”

Aparência de Tomie:

Tomie só conseguiu cair na gargalhada, ela não aguentou, realmente a mulher que estava diante dela era única, com certeza era uma ninja poderosa, de patente muito maior que a dela. Seu riso agudo começou baixo e então foi se tornando mais alto, deixando que sua mente delirasse.

– Sakaki… Papai… Hahahaha… Estou diante de alguém que não posso enfrentar… Será que essa é a sensação que as pessoas tem quando estão diante de mim? – disse para si mesma.

Levantou-se, mas não revelou seu verdadeiro rosto, não era boba.

– Parece que você é mais inteligente do que pensei. – Tirou do bolso, com as mãos trêmulas de medo, um papel, nele contia um rascunho que Tomie costumava levar consigo, que mostrava exatamente onde a vila estava.

– É aqui – Apontou – Mas eu estou indo pra lá agora, então se quiser, pode me acompanhar.

Tomie fez o máximo para parecer útil aquela mulher, sabe-se lá o que ela faria caso Tomie não fosse. No processo, relembrou os diversos momentos de sua vida em que já deixou outras pessoas naquela posição. Em sua mente, entretanto, esse recuo, era para que no futuro pudesse usar aquela mulher como quisesse. Não revelar seu verdadeiro rosto, inclusive, lhe daria vantagem no momento que a conhecesse de verdade, podendo domar aquela fera. Quanto mais perigoso e selvagem o brinquedo, mais divertido ele era.

Seu pai, preso a algum tempo, definhava nas próprias fezes e mijo, Sakakibara, seu escolhido, já estava domesticado e só existia para um propósito, serví-la, numa relação entre um servo e seu Deus. Estar diante daquela selvagem fez com que ela almeja-se domar aquele ser, colocá-la numa posição de submissão e então usá-la, assim como fez com seu pai, depois, quem sabe, pudesse desenvolver suas habilidades pesquisando cada aspecto daquele corpo, investigando centímetro por centímetro

Ao imaginar as possibilidades que tinha em frente, seu narcisismo e, na verdade, a própria realidade, lhe dava a vitória, Tomie havia vencido uma ninja, possivelmente mais forte que ela, sem derramar uma gota de sangue.  Ela não abriria a mão dessa vantagem, levaria a mulher até Konoha, se ela assim desejasse ou entregaria o mapa para que ela chegasse lá. No fundo, guardou para si a ansiedade, como de alguém que compra algo e espera por sua chegada, seu brinquedo novo logo estaria em casa.

Aparência de Tomie: