O espectro enegrecido de seus olhos enturveceu mediante os primeiros raios de sol que lhe invadiam as frestas na janela. Os esfregou e girou o dorso na direção contrária, como quem evita o inevitável.

O comportamento era rotineiro. Com o rosto afundado no travesseiro e as pálpebras semiabertas ele o amaldiçoava; o sol, a luz e o teor de comprazer que sua figura simbolizava. Para Enji, era sempre o contrário; o despertar era trivialmente acompanhado pelo desconsolo da insignificância. Como quem dorme acorrentado à decepção de ter adiado uma vez mais suas pretensões.

Por via de regra, era nesse ínfimo recorte de tempo que sua controversa figura motivacional irrompia. Não havia tempo para desperdiçar com frustrações. Não podia dar-se o luxo do ócio enquanto aquele sujeito lhe assombrasse, seja de onde fosse. Era a única forma de desvencilhar-se do martírio imposto por ele.

Atravessou o cômodo e prostrou-se de pé frente à vasilha com água. Olhou-se por um instante mediante a superfície espelhada. Patético. E então esbofeteou-se com uma série de porções d’água contra a face, deixando que escorresse pelo dorso seminu. Então secou-se, tornou ao cômodo anterior e buscou pelas vestes escuras frequentemente utilizadas; as calças travadas no tornozelo, sandálias e o moletom negro que comumente trajava por baixo do colete.  

Direcionou-se até o cômodo principal, surrupiou uma fatia de pão da sacola que jazia em cima da mesa e avançou portas afora. Naquela manhã, sabia-se, encontrar-se-ia com uma jovem chunin recém-formada que lhe auxiliaria com o ordenado do dia. O roteiro da missão já estava devidamente determinado e estudado pelo Uchiha, muito embora não concordasse com a deliberação dos superiores em recomendar-lhe uma parceira. Era mais do que suficiente para completar a tarefa e atentar-se à presença alheia lhe era um verdadeiro estorvo.

Como de costume, atravessou o complexo fantasmagórico do clã e deu-se por meio ao fluxo matinal do vilarejo. Alguns poucos shinobis misturavam-se aos civis, mulheres, crianças e comerciantes que transportavam grandiosas cargas rumo ao principal centro comercial do País do Fogo. Os mais gentis, aqueles que por ventura o conheciam brevemente, arriscavam um cumprimento ou outro apenas para serem respondidos pelo silêncio de uma cara amarrada.

Em dado momento, deparou-se com um carro espaçoso amarrado à dois bovinos de grande porte, encostado à direita dos gigantescos portões da vila. Existia algum prestígio atrelado aos adornos do automóvel. Era bem rebuscado. Na traseira da carroceria encontravam-se duas grandes cortinas, as quais, sabia-se, guardavam o objetivo central de sua missão. Fora recebido pelo carreteiro.

─── Ooh! Muito bom dia, jovem Enji! ─── Cumprimentou com desnecessária altivez o pequenino senhor encarquilhado de pouco mais de um metro e cinquenta, vestes longas e acinzentadas, uma barba desgrenhada e um jingasa que lhe cobria a careca. Simpático por si só. ─── Sua companheira já está aqui. Queira se aconchegar, partiremos em alguns minutos!

Completou e margeou o carro rumo à cabine, como quem sequer esperasse uma resposta. O simples gesto de rotular sua suposta parceira como companheira o fez estremecer de desgosto. Respondeu-lhe timidamente, ainda assim.

─── Tsc. Bom dia. ─── Murmurou às costas do velhaco e voltou as atenções às cortinas. Enfim prostou-se a frente da traseira e as afastou. Sequer pôde avaliar o cenário que se apresentava a sua frente; a voz aguda e feminina atravessou-lhe num tom caprichosamente agressivo.

─── Ora, ora. Se não é o alecrim dourado. ─── Disse a kunoichi. Sentiu-se desconcertado por um instante, mas logo recobrou o gênio costumeiro. Atentou-se ao cenário inesperado que se encontrava a frente: a cabine era espaçosa e bem arejada, equipada com mantimentos para uma viagem aconchegante; o leito com a paciente em questão encontrava-se ao centro e a atrevida chunin posicionava-se rente à sua cabeça, com ambas as mãos por sobre as têmporas da mulher desacordada. ─── Vai mover essa bunda e entrar ou pretende nos atrasar ainda mais?

─── H-hai! ─── Patético. Cedera uma segunda vez à sensação desconcertante imposta pela menina. Não havia motivos para mentir: existia algo na jovem kunoichi que despertava sobre si esse efeito momentâneo; talvez o gênio autoritário; talvez o simples fato de ser bonita o suficiente para fazê-lo sentir-se atraído. Podia aparentar frieza e apatia, mas não podia fugir das nuances de sua puberdade. Não é como se tivesse tido inúmeras experiências com o sexo oposto ou algo do gênero, afinal.

Ousou reparar um tanto mais na menina que lhe instigara: era uma figura pequena, pouco maior que o velhaco encarquilhado que lhe recebera momentos antes; corpanzil ajustado; curvas sobressalentes; cabelos longos, escorridos e levemente alaranjados. Uma última troca de olhares lhe revelara os belos pares de olhos numa suave coloração púrpura, pouco antes de voltá-los para a paciente cuja qual permanecia em contato frequente.

─── O que está fazendo? ─── Perguntou à menina, questionando acerca da posição estática que mantinha rente à cabeça da mulher. Uma vez analisado a carga, não compreendia ao certo os danos que lhe haviam infligido. A paciente, por sua vez, era uma mulher que beirava os trinta anos. Cabelos curtos e negros e uma aparência suficientemente plena para estranhar o relatório que constava na missão; sem lesões visíveis, ferimentos ou sequer arranhões por quaisquer partes visíveis de seu corpo. ───  Ela não parece como alguém gravemente ferida.

─── Você é idiota, Uchiha Enji? ─── Pronunciou uma vez mais, no mesmo tom agressivo de sempre. O momentâneo caráter receptivo de Enji para com a menina começara a se esgotar a partir daí. Era o suficiente. Ela tomaria conhecimento de que não era, em nada, superior ao rapaz.

─── Genjutsu. Isso quer dizer que o usuário é tão poderoso a ponto de mantê-la sob efeito depois de tanto tempo? ─── Interrompeu o possível comentário infame da menina e concluiu. ─── Sim. E você, Yamanaka Ume, é a última barreira que a separa da morte cerebral. Estou certo?

A menina voltou a fitá-lo com um semblante de espanto, algo que beirava surpresa e uma leve pitada de admiração. Como quem trava um combate entre gênios orgulhosos, não demorou para que tornasse á expressão de seriedade. Deliberou um pequeno sorriso sacana enquanto formulava algumas palavras.

─── Então você não é um completo ignoran... ─── Ladrou e então cessou, visto que o Uchiha simplesmente lhe dera as costas. O platinado voltou a afastar as cortinas enquanto lhe fitava por sobre os ombros. Só então percebera que já haviam coberto alguns quilômetros de viagem bosque à dentro.

─── Vou me juntar ao velho. Não quero desconcentrá-la. Preciso dessa mulher viva até o fim do dia. ─── Saltou dos limites da carroça e executou um movimento simples pelo teto da cabine, alcançando o acento do lado do senhor que lhes conduzia ao destino. A Yamanaka não teve tempo de tecer um comentário sequer.

─── Yoo! Jovem Enji! ─── Voltou a cumprimentá-lo o velho cinzento. Com ambas as mãos atadas aos cordões que dirigiam os bovinos, ele lhe falava com a mesma simpatia forçada. ─── Os bosques são ainda mais verdes a essa hora, não acha?

─── Não acho. É o mesmo verde de sempre. ─── Retrucou o Uchiha, sisudo e sincero, como sempre fora. A resposta desnecessária serviu como um recado subentendido pelo senhor, que optou por não retomar a interação. Percebeu quando os olhos gentis e enrugados lhe sorriram, ainda que não lhe desse motivo algum para tal.

Permaneceu em silêncio enquanto esquadrinhava cada metro de perímetro que atravessavam às passadas apressadas dos motores animais. Já era começo da tarde quando a pequena comitiva aprofundou-se ainda mais nas densas cortinas esverdeadas do bosque. A robustez de árvores gigantescas tomavam o terreno antes cerceados por meros arbustos. O sol, por sua vez, lhes banhava apenas por pequenas frestas entre as folhas, dificultando um tanto a visão em médio alcance.  

─── Não gosto desse caminho. Deveríamos ter prosseguido em campo aberto. ─── Discorreu ao velho carreteiro enquanto tentava prender-se, em especial, aos pontos cegos produzidos pelo denso matagal em que se encontravam.

─── Não se preocupe, jovem Enji. ─── Replicou o velhaco e tornou a observá-lo com a mesma feição exibida há pouco. ─── Os bosques são ainda mais verdes a essa hora, não acha?

─── Não. Não acho. ─── O timbre impassível cortou os poucos segundos em que se entreolhavam, reafirmando o que já lhe havia dito. Era apenas um palpite, mas o Uchiha certamente compraria a suspeita. Era resoluto demais para duvidar até mesmo de sua própria intuição.

Levou a palma para próximo à anca direita, onde situava-se, horizontalmente, a empunhadura da tanto. A empunhou e mesclou o mesmo movimento com uma investida inesperada em arco, visando o pescoço do senhor que encontrava-se ao seu lado. Um tanto ingênuo, talvez. O velho acompanhou sua tentativa e pôs-se em embate. Do fundo das mangas do gibão acinzentado, uma gama de lâminas atreladas á uma garra mecânica fora de encontro ao golpe do platinado. O carro estremeceu e os bois responderam ao tilintar do aço, reagindo com movimentos embravecidos e instáveis. A silhueta do velho tomou distância num voo incomum, como quem flutuasse para alguns metros da traseira da carroça.

─── Enji! O que está acontecendo?! ─── Bradou a jovem chunin do interior da cabine, provavelmente alerta aos movimentos irregulares da carroça. Enji acompanhou o posicionamento do velho, do qual já duvidava de sua verdadeira natureza. Fez frente ao oponente e prostrou-se de pé por sobre a ponta da cabine, guardando as cortinas que levavam até o seu interior.

─── Não é nada! Não desgruda dela. Eu cuido disso. ─── Lhe respondeu o Uchiha. Tornou a analisar o sujeito que flutuava a sua frente. Era como se o senhor já não tivesse uma postura humana. O gibão, os braços e a cabeça pendiam para baixo como um corpo sem vida, um fantasma, uma marionete. Fui enganado desde o início por um truque barato desses. ─── Vejo a ferramenta, mas onde está o manipulador?

Proferiu ao homem que supostamente controlava aquela marionete. Não demorou para que um timbre sinistro emergisse por entre o breu das árvores que lhes cercavam.

─── Eu sequer estava escondido, Uchiha Enji. ─── Pronunciou-se o homem. Ao prestar atenção na trajetória da marionete e no tom de voz da figura, identificou-o ao longo da floresta, sentado por sobre um galho grosseiro que desprendia-se de uma árvore colossal. Trajava um gibão negro de gola alta o suficiente para cobrir-lhe a boca e cabelos avermelhados que pendiam por toda a extensão do lado direito de seu rosto. Ao seu lado, jazia um corpo inquieto, amordaçado e constringido por fibras de aço. ─── Você foi manipulado como um pequeno cordeiro, garoto. Obrigado por trazê-la até aqui.

Completou o titereiro, irrompendo numa gargalhada bisonha e descompensada. Percebeu quando ambas as mãos do ruivo moveram-se de forma abrupta, coordenando a ofensiva de sua marionete. A jingasa que cobria a cabeça do boneco fora estraçalhada por uma série de seis grosseiros cabos de aço de ponta afiada que prontamente avançaram na direção de Enji. Não titubeou. Com a tanto empunhada na palma direita, saltou dos limites do teto da carroça e projetou um movimento rotatório em meio aos cabos na tentativa de combater as extremidades afiadas, partir as ligas e abrir caminho até sua origem. Para alcançar o titereiro, teria que lidar com sua marionete. Era inevitável.

O movimento sucedeu-se quase perfeito, não fosse pela artimanha inesperada preparada pelo titereiro: ao aproximar-se do pescoço da marionete, uma nova gama de lâminas medianas despontou de sua boca, surpreendendo o Uchiha. As lâminas não só travaram o avançado de Enji, como lhe infligiram uma série de fissuras no braço, na bochecha esquerda e pelo menos mais três delas ao longo do dorso. Rangeu os dentes mediante a dor.

─── Isso não vai me parar. ─── Disparou o Uchiha. Manipulou a tanto e a forçou de baixo para cima, levando consigo o amontoado de lâminas que intervinham sua investida. Num curto espaço de tempo, visualizou a brecha no pescoço da estrutura e voltou a lâmina em sua direção, decepando-a. O golpe pareceu gerar alguma instabilidade na marionete, fazendo-a cair momentaneamente. ─── O próximo é você.

Avançou de imediato assim que os pés reestabeleceram o equilíbrio e irrompeu numa nova investida, dessa vez, direcionada ao titereiro.

─── Eu, Uchiha Enji? Você não está esquecendo de algo? ─── Enji travou o movimento por um milésimo de segundo, atento às palavras do sujeito. Percebeu quando o sorriso em seu rosto alargou-se, dando espaço para um semblante aterrador. ─── Deve ser difícil entender que você não é o centro das atenções aqui, garoto!

Esbravejou o homem e voltou a mover as mãos. Uma vez em que nenhum movimento fora detectado à sua frente, Enji voltou as atenções às suas costas; a cabeça que outrora havia sido decepada, dessa vez munida por uma única lâmina, voltava a se mover de maneira lenta, acelerando conforme traçava seu rumo em direção às duas kunoichi que encontravam-se na cabine.

─── E-Enji... ─── Escutou o murmúrio de Ume e vislumbrou seu rosto assustado, ainda posicionado rente ao corpo da mulher que tratava, sem sequer poder ser mover. O Uchiha deu para trás abruptamente, tentando alcançar o projétil que disparava em direção à menina. A tanto pendeu de sua mão quando iniciara uma pequena sequência de selos. Sabia que não chegaria a tempo de combate-lo. Se as lâminas chegassem até Ume, toda a missão estaria a arruinada.

─── Merda! ─── O corpo do rapaz transfigurou-se numa espécie de vulto retilíneo que pareceu desaparecer e reaparecer frente à cabine, interpondo-se entre a kunoichi e o projétil controlado pelo titereiro. Com ambas as mãos agarrando-se às extremidades da cabeça da marionete, o Uchiha travava seu movimento, mas não o suficiente para frear o avanço da lâmina, que fincou-se profundamente em seu ombro esquerdo.

─── Eu já disse que cuido disso. ─── Proferiu de maneira serena, como quem tivesse todo o controle da situação. Dedicou à menina uma última olhadela por sobre os ombros, revelando a orbe rubra estampada por um tomoe solitário.

─── Isso é... ─── Sussurrou a menina, sem chance para completar o comentário. Enji voltou a fitar o titereiro, dessa vez com a percepção e a clareza dos movimentos ligeiramente aprimoradas. Percebeu quando o sujeito decidira deixar o seu posto e aterrissar por terra. O ruivo lhe fintava com um semblante curioso, beirando a preocupação.

─── Então esse é o poder ocular do clã Uchiha, heim? ─── Indagou o criminoso, rapidamente cedendo ao semblante bisonho e bizarro de outrora. Moveu os braços e manipulou as partes pendentes de sua marionete, que prontamente se alinharam ao seu redor. ─── Gostei da estética. Vai cair muito bem em uma das minhas criações.

Dedicou ao Uchiha um largo sorriso antes de proceder com seus movimentos. Os membros desconectados da marionete começaram a rodeá-lo com maior intensidade, como quem projeta uma possível investida.

─── Você não está esquecendo de algo? ─── Retrucou Enji, utilizando-se do mesmo sarcasmo apresentado pelo homem e afastando a cabeça da marionete que sustentava a lâmina em seu ombro. Atirou-a no chão e deixou com que o próprio sangue escorresse pela fissura. ─── Você deixou para trás o seu único trunfo.

Completou o rapaz, desviando o olhar para o mesmo galho do qual o titereiro havia aterrissado. O doutor, seu refém, havia sido mantido amarrado no topo da árvore, o que proporcionava ao Uchiha uma gama de novas possibilidades. O homem pareceu entender o recado de Enji, como quem recebe um estalo imediato e desesperador. O homem virou-se por um único segundo, reconhecendo o erro. Quando voltou a fintar o Uchiha, Enji já tinha ambas as mãos fixadas num selo, à frente dos olhos carmesim.

─── Suma. ─── O decreto soou mais estarrecedor do que o normal. Enji engolfou uma quantidade considerável de oxigênio como catalisador para o que estava por vir: ao expirar o conteúdo de volta, uma torrente descomedida de chamas alastrou-se à frente, tomando por si uma gigantesca extensão do perímetro num fluxo incendiário absolutamente destrutivo.

As chamas engoliram os pedaços embaralhados da marionete, assim como seu manipulador, que pouco pôde fazer se não assombrar os arredores com um último brado excruciante. Boa parte da vegetação à sua frente era varrida junto do inimigo naquela imensidão flamejante, poupando apenas as mais altas e robustas árvores; dentre elas, a que sustentava o doutor constringido.

Enji cessou o movimento e caminhou lentamente por entre as chamas, certificando-se de que já não restavam quaisquer rastros acerca do sujeito. Em dado momento, saltou e escalou a grande árvore em direção ao medinin, resgatando-o. Lhe conduziu pelas chamas até a cabine da carroça, onde encontraria sua paciente e Ume. Ele rapidamente assumiu as rédeas da situação. Ume, então, aproximou-se do rapaz.

─── Você tá horrível, Uchiha Enji. Não achei que pudesse piorar. ─── Troçou a garota, encurtando o espaço entre os dois. A palma destra da menina tocou-lhe o rosto com delicadeza, próximo do pequeno corte que havia sofrido no local. O semblante da menina alterou-se de imediato; suas grandes orbes ametista fitaram-no intensamente nos olhos vermelhos, como quem havia visto algo mais além, surpresa. Enji segurou-lhe o pulso com violência e afastou a mão.

─── O ombro, por favor. ─── Pediu á menina, visto que o ferimento lhe incomodava profundamente. Desviou o olhar da menina, ainda com aquela leve sensação desconcertante. Aguardariam ali até que todos os reparos fossem feitos e o objetivo de sua missão fosse tratado.