A luz prata-esmeralda da lua banhava a densa mata nos arredores da Névoa, e a alta umidade promovia uma bruma que ofuscava os feixes já muito esmaecidos do astro prateado.

　　　Os movimentos dos animais confundiam-se com o dos galhos retorcidos que balouçavam com o vento noturno. Uma valsa de sombras que mais parecia uma técnica de ilusão lançada através da neblina.

　　　O silêncio sinistro da floresta imperava. O silvo indistinto de animais. O farfalhar de densas folhagens enegrecidas. Os estalos de grama sendo dobrada.

　　　Na copa de uma das árvores, um pedaço da superfície do tronco escuro começou a se comportar de maneira estranha: ondulava feito líquido.

　　　Uma fração de pele pálida, então, emergiu dali.

　　　Era uma face feminina, delicada e de pálpebras cerradas. Os volumosos cílios abriram-se, revelando grandes olhos cor de violeta. Eles reluziram com o primeiro contato do luar e, sem demora, voltaram-se para baixo...

　　　Para onde alguns respingos do caótico sangue da guerra caíram.

　　　Corpos ensacados encimavam os ombros musculosos de figuras que percorriam trilhas fantasmas, apagadas pelas protuberantes raízes do vale, cujas pegadas se desfaziam no solo naturalmente encharcado. Homens sem rosto — apenas uma camada lisa de pele estampava a face — desempenhavam o papel de transportá-los.

　　　Muito atenta, Haru contou quantos homens haviam e quantos ensacados carregavam. Era uma proporção de um para três, respectivamente, num total de dez sem-rostos.

　　　Depois de uma boa análise, a face porcelânica afundou-se novamente no tronco.

　　　A marcha dos homens prosseguia de modo contundente. Porém, apesar de parecerem verdadeiros bárbaros e carregarem de dois a três corpos sobre os ombros, eram muito cautelosos em suas passadas. Tocavam o chão com cuidado; entre as raízes, nunca sobre.

　　　O barulho da terra aquosa recebendo essas passadas ecoava como qualquer outros barulho da mata: parecia fazer parte de sua essência... exceto por algumas notas a mais em sua cadência. Uma sutil divergência que fora captada pela jovem filha da Névoa em suas investigações.

　　　No caminho enluarado, de repente, os homens cessaram o movimento.

　　　Sem emitirem qualquer som, viraram as carrancas lisas uns para os outros. Um silvo mais expressivo do que o comum soou por ali. Alguns segundos se passaram até a tensão baixar. O sem-rosto que estava mais à frente voltou-se para o norte da trilha, deu o primeiro passo para voltar à caminhada, e o resto o seguiu.

　　　O bando deu mais um passo, depois outro, e outro, e... não foram capazes de dar mais um.

　　　Eles se encararam novamente e, mesmo com a face sem olhos ou boca, era como se a essência de um semblante esboçasse espanto. Então notaram que os pés afundavam numa estranha substância líquida-pastosa; já estavam presos até a panturrilha.

　　　Apesar de nitidamente confusos, beirando o desespero, continuavam sem emitir som algum. O que logo mudou: um grunhido abafado foi proferido pelo sem-rosto que encabeçava a incursão, assim que ele percebeu que uma parcela do chão a sua frente se liquefazia.

　　　A figura franzina brotou da terra, a princípio enegrecida antes dos feixes prateados iluminarem seus traços.

　　　Os olhos violeta refulgiram.

　　　E um vulto serpenteou pelo pescoço da garota até revelar escamas lívidas com o reflexo do luar. A serpente albina silvou, evidenciando ser a dona das notas mais agudas de antes.

　　　Os algozes se agitaram. Tentaram, arduamente, retirar os pés da substância estranha, mas isso só os fazia afundar mais. Era muito, muito pegajosa. E aqueles dois orbes violáceos os fitando irradiava uma tensão avassaladora que fazia os homens perderem a razão: remexiam-se com cada vez mais intensidade; afundavam-se na mesma medida.

　　　Preciso de ao menos um vivo, pensou Haru, para levá-lo a Chi. Ela sabia que o Genjutsu de sua sensei era poderoso, o suficiente para que uma averiguação de memórias fosse tarefa fácil.

　　　Ergueu uma mão, dentre os dedos emitia-se um brilho metálico. E Haru foi se aproximando dos sem-rostos, saboreando o medo que exalava das carrancas lisas.

　　　O aparentemente líder deve saber mais.

　　　Ficou diante do sem-rosto que grunhia. Ela era capaz de observá-lo face a face, sem a necessidade de inclinar a cabeça, pois ele afundara até a cintura.

　　　Estava prestes a despencar a mão para desferir um golpe com a agulha. E então o algoz, numa primorosa demonstração de força, empilhou os dois corpos que carregava e os lançou na direção de Haru.

　　　Já esperando encontrar algum tipo de dificuldade, a Watanabi sabia como deveria esquivar. Ela já havia calculado a força daqueles homens, então sua mente atinada era capaz de entender a que velocidade aquele arremesso seguiria — e pode dizer que se decepcionou, pois esperava mais.

　　　Parece que a técnica de Suiton impossibilitou parte da capacidade de contração muscular.

　　　Logo após as frações de segundos em que ocorreram seus pensamentos, a garota disparou como um vulto preto-violeta para a esquerda. Os ensacamentos acertaram arbustos e quebraram raízes e galhos onde caíram. E, justo no fim do trajeto da kunoichi, o dardo prateado foi lançado. O objeto incisivo assobiou pelo vento até cravar na jugular do sem-rosto.

　　　Após situar-se devidamente no melhor local de pouso que fora calculado, a garota recuperou a postura. E pensou: O veneno o adormecerá. Agora eu só preciso...

　　　O olhar violáceo estremeceu. Shiro silvou freneticamente.

　　　Uma repentina luz azulada passou a banhar a pele de porcelana. Cada um dos sem-rosto brilhou com um fogo espiritual que passou a consumir suas carnes. Os ensacamentos foram largados de qualquer jeito, porém, por sorte, foram amparados pelo líquido misterioso. Então, o inesperado se findou: os carrascos se reduziram a pó.

　　　— Tsc... — balbuciou Haru. Uma técnica de autodestruição.

　　　A substância líquida-pastosa também se desfez, mas essa ação fora premeditada pela kunoichi da Névoa.

　　　Ela se aproximou dos ensacamentos, puxou outra agulha e começou a rasgar os embrulhos. E assim encontrou corpos de civis da Névoa e das intermediações da Água.

　　　Checou os pulsos; não encontrou pulsações; constatou os óbitos. E, através da temperatura, concluiu que alguns ainda estavam frescos, já outros foram guardados por um tempo.

　　　Isso, porém, não foi uma surpresa para ela. Já era o esperado...

　　　Já era o que ela encontrava há algumas luas.





　　　Devo esperar outro rastro de novas criaturas sem-rosto?

　　　Haru inclinava-se sobre a mesa. Depois de um longo suspiro, deitou a cabeça sobre os braços. Logo à frente estava Shiro, enrolado, quieto, mas silvando em volume baixo.

　　　Ela se pegava pensando no que havia acontecido nas nações desde as últimas três primaveras que testemunhou. A Névoa já não era mais a mesma. E sabe-se como o passado recente da vila fora sombrio.

　　　 Aspirante a Jōnin e cientista engajada, a jovem Watanabi teve de colocar de lado suas missões regulares para poder prosseguir com os experimentos, porém sem o maravilhoso Laboratório da Névoa. Agora, suas experiências aconteciam debaixo da neblina, abaixo da terra...

　　　 — Até que os detalhes rústicos das paredes de pedra dão um charme a mais — disse Haru, varrendo com os olhos o ambiente improvisado. — Pelo menos agora entendo como pensam as mentes clandestinas.

　　　 Na superfície da Névoa, um cientista não mais ficaria vivo.

　　　De repente, a aproximação de uma assinatura de chakra já conhecida repercutiu no ímpeto sensorial de Haru, acima do nível de seu laboratório subterrâneo.

　　　Calmamente, ela se levantou, aprumou-se e subiu as escadas. Passou pelo alçapão que ficava escondido sob um belo tapete de camurça. Em poucos segundos estava no térreo da graciosa floricultura — uma loja de fachada que funcionava apenas para camuflar o laboratório.

　　　Ela vislumbrou o bico talhado na máscara da figura trajada de preto do pescoço aos pés que esperava atrás do balcão.

　　　— Senhorita Haru — disse o Doninha, um dos caçadores oficiais da Névoa —, trago esta missão para você.

　　　Haru olhou de soslaio para o pergaminho estendido em sua direção. E respondeu:

　　　— Eu disse que não me ocuparia com missões do quadro por um tempo.

　　　— É um pedido direto do Mizukage-sama. Ele acredita no seu potencial para uma missão de investigação.

　　　Ela olhou melhor o invólucro e percebeu o selo oficial.

　　　Haru hesitou. — Pode me adiantar o assunto? — perguntou, enquanto apanhava o pergaminho.

　　　— Há relatos de pessoas desaparecidas sendo vistas na floresta que cobre as redondezas, e algumas até foram encontradas mortas. Em alguns interrogatórios, pistas de um pequeno vilarejo abandonado no sul do País da Água foram encontradas. Imagina-se que lá seja a base da facção responsável pelos desaparecimentos.

　　　Os sem-rosto! Haru naturalmente amarrava as pontas soltas. Apesar da surpresa, ela conteve os músculos de sua face para que não esboçasse nenhuma reação.

　　　— Certo. — A voz saiu seca.

　　　— Boa sorte, senhorita Haru — disse o Doninha, momentos antes de sumir num vulto preto.

　　　A Watanabi deu de ombros e torceu os lábios.

　　　Demorei muito tempo com a minha investigação. Tempo suficiente para que os desaparecimentos fossem oficializados pelos demais ninjas da Névoa. Quanto mais vai demorar para cair nas graças do regime aristocrata dos soldados da Água? Aquele reino tolo não pode se encarregar de uma missão como essa...

　　　— ... Devo acelerar os meus passos.

Considerações: