Kyoji saiu cedo de casa para cumprir sua missão. Enquanto caminhava pela densa humidade em direção aos portões da Vila, a cabeça do jovem Genin correu quase todo seu módico conhecimento de biologia. Bom, cabras tem como predadores...lobos? Águias? Onças? Raposas? Tem algum desses bichos no País da Água?! Talvez ele devesse ter prestado mais atenção nas aulas teóricas da Academia...mesmo assim, a caminhada foi produtiva. Ficou surpreso de ver quantas lojas novas estavam surgindo, vendendo produtos de todo tipo, e quanta propaganda se espalhava sobre esses novos alimentos. “Orgânicos, sem lactose, sem glúten, sem gordura! Fazem super bem!”. Kyoji viu o esforço de venda dos vendedores e só conseguia pensar: “o que é glúten?”.

Chegando à fazenda, Kyoji encontrou uma propriedade rural humilde e um proprietário desapontado. O dono, o velho Tsurui, gritou com Kyoji: “Eu contratei um SHINOBI e me mandam um PIRRALHO?”. Kyoji, claro, não leva desaforo pra casa: “Eu sou GRADUADO e QUALIFICADO para resolver esse seu probleminha de M@#!%, ok?!” (Defeito: Senso de Humor Grotesco). O jovem Genin levou um tabefe do velho, e saíram cada um para um lado, irritados um com o outro.

Caiu a noite e o jovem Genin estreitou sua postura com a situação. Ele se concentrou e se faz valer do Henge no Jutsu (Rank E), que havia aprendido na academia, para se disfarçar de cabra. Ficou ali, no meio dos demais animais, tremendo de medo de uma onça ou urso ou leopardo aparecerem. Vai saber se existem esses animais no País da Água!

Passadas algumas horas, para sua surpresa, o que surgiu foi um marmanjo, de 20 e poucos anos, com barba rarefeita, que pegou uma cabra debaixo do braço e saiu correndo. O instinto de Kyoji foi de correr atrás dele – mas não adiantava pegar no flagra. Se não era um predador, mas sim um ser humano, talvez ele não estivesse matando todas as cabras. Talvez Kyoji pudesse recuperar as cabras perdidas.

Kyoji seguiu o homem, pé ante pé. A caminhada durou horas, e levou o Genin até outra pequena fazenda. Chegou lá no meio da densa noite, e esta propriedade era bem menor e bem mais pobre. Lá, Kyoji encontrou todas as cabras do senhor Tsurui sendo cuidadas pelo marmanjo. Ele tirava leite dos animais, embalava, e colocava em sua carreta para levar de volta para a Vila da Névoa.

O Genin imediatamente reconheceu a logo na embalagem. Era aquela loja de orgânicos nova!! Eles vendem leite de cabra muito mais caro e dizem ser muito melhor que leite de vaca!! Embora Kyoji tenha aprendido uma lição importante de marketing e branding no dia, fato é que aquelas cabras não pertenciam ao marmanjo. Portanto, saiu das sombras e confrontou o garoto. Disse que ele sabia que fazia o que era preciso para sobreviver, mas ele não podia roubar dos outros! Propôs ao marmanjo um acordo. Ninguém fica sabendo do que você fez, e eu devolvo as cabras. A minha missão é só devolver as cabras. Não te prender. (Talento: Carismático). O marmanjo relutantemente aceitou.

Assim, Kyoji chegou junto do nascer do sol na fazenda do velho Tsurui, guiando todas as cabras que ele havia perdido. O velho ficou impressionado e, a contragosto, elogiou o serviço. “Bom trabalho, garoto.” O Genin abriu um sorriso. “Tô aqui pra isso!”, ele riu.

Traição. Do outro lado da mesa, a palavra saía dos lábios da mulher para ecoar na cabeça de Kyoji. Ele já a tinha ouvido várias vezes: nas aulas teóricas da Academia, onde tanto falavam das traições de shinobis e Vilas. No bordel onde sua mãe trabalhava, onde os clientes, não raro, iam trair suas esposas. Nas palavras de seu antigo Mestre, que dizia ter sido traído por Konohagakure, ao ser deixado para morrer, sem as pernas, em uma ruela de Kirigakure.

Mas ali naquele quarto bem iluminado, impecavelmente limpo, onde uma mulher muito rica se sentava rodeada de serviçais que a circulavam como insetos à luz, a palavra faltava o seu fio usual. A cliente, Senhora Fukubi, parecia mais preocupada com a divisão de bens do que com a existência – ou não – de outra mulher a circundar seu esposo. Afinal, ao que indicava, rico mesmo era o marido. Era ele que tinha dinheiro. A mulher, a cliente, apenas se beneficiava da fortuna – ela fez seu jogo e, como uma aranha que prende um inseto em sua teia, capturou sua presa. Um excêntrico herdeiro milionário.

Logo, outra mulher nesse meio seria intolerável – seria outra pessoa a dividir patrimônio. Era uma ameaça para Sra. Fukubi de perder serviçais, perder a cadeira luxuosa, perder a limpeza do quarto. Uma perda muito maior e mais severa que a de um marido.

Foi com isso em mente que Kyoji se pôs na rua. O conflito era claro: ele tinha ouvido as palavras da mulher, sabia o que ela queria. Ao mesmo tempo, e daí? E se o homem tivesse se apaixonado por outra? As palavras de seu mestre ecoavam em sua mente. Era para isso que servia um shinobi? Um cidadão treinado para ser arma de guerra, que vai se dispor a resolver preocupações patrimoniais de mulheres ricas? Talvez como uma forma de protesto, ainda que inconsciente, Kyoji fez questão de resolver a questão sem se valer de suas habilidades. Perguntou nas ruas pelo Sr. Fukubi: se haviam visto ele, por onde poderia andar, e, em pouco tempo, encontrou uma resposta.

Não era difícil achá-lo. A cliente provavelmente sequer havia tentado. Ela havia se acostumado a ter serviçais a seu dispor, alguém para trabalhar para ela, e não pensou duas vezes em colocar alguém a seu serviço.

O Sr. Fukubi estava sentado em um bar copo sujo, tragando um charuto e jogando cartas. Vestia roupas surradas, sentava em um banco de madeira e tinha o cabelo e barba completamente desgrenhados. Ele jogava cartas com homens igualmente imundos, porém visivelmente mais castigados pela vida. Entre gritos, risadas, copos quebrados e cerveja, Kyoji percebeu que o homem jogava mal – muito, mas muito mal. Tão mal que só podia ser de propósito.

E, então, tudo ficou claro. Era de propósito. A cada perda, ele tinha de pagar o valor apostado para seu oponente, que sempre pulava de alegria, quando não chorava. Ele perdia de propósito para dar dinheiro limpo a pessoas necessitadas. Olhou para o Genin. Sabia que ele tinha descoberto seu esquema. E fez um sinal com o dedo, pedindo silêncio. Kyoji sorriu e voltou à casa da Sra. Fukubi.

O Genin revisou o papel da missão. Estava claro. Seu papel era “investigar” e “declarar” se há ou não traição. Pois então, tocou a campainha. Sentou-se na cadeira chique. E, com muita cerimonia, aproveitando cada mililitro daquele chá importado que lhe fora servido, disse, com a voz retumbante ecoando pelo quarto rico: “Não há traição.” Se levantou. Fukubi gritava. Perguntava. Mas o que é então? Onde ele está? O que ele faz? E ecoou por todo o quarto o som da grande e luxuosa porta da casa se fechando com a saída de Kyoji.

Kyoji pegou a espada com grande cerimônia. O Sr. Hiki havia sido muito claro: “Tome a espada e enterre-a na cerejeira onde encravei no tronco nossas iniciais. H + F.” Bom, não deveria ser difícil. Tomaria tempo, sim. Um trabalho monótono, sim. Mas era seu serviço, e o Genin não se demorou com seus questionamentos.

O sol raiava brando naquele dia de outono. A mudança de estações se fazia perceber nas cores das folhas das árvores, da grama e até no próprio vento. O cheiro dos arredores de Kirigakure era diferente. Não havia algo ali de triste, propriamente, mas havia algo que decididamente não era feliz. Talvez as folhas marrons nos convidem a refletir sobre ciclos, pensava o Genin. “Elas anunciam que virá o frio, e o frio anuncia que virá o calor”, pensou Kyoji. As palavras de seu mestre.

Então, enquanto caminhava pela densa névoa logo após os portões da vila, pensou em quantas vezes o Sr. Hiki havia visto as estações mudarem junto da Sra. Funabi. Quantos verões e invernos. Quantos ciclos. Quanta coisa se abriu e se fechou.

Foi perdido nessas palavras que Kyoji se deparou com a primeira cerejeira. O tronco era grande, firme e claramente centenário. O Genin abriu um largo sorriso quando viu que ali mesmo já havia as iniciais “H + F” cortadas na madeira. “Há! Dia de sorte!”, ele pensou consigo. Mas tinha uma pulga atrás da orelha. Teria sido tão fácil?

Foi para a cerejeira ao lado e...”H + F.” Para a mais à esquerda, então, e... “H + F.” E Kyoji passou ali horas rodando por todas as cerejeiras da região, e, sem erro, todas estavam encravadas por “H + F.”

O Genin limpou o suor do seu rosto. “Velho safado”, ele pensava. Mas sorriu. Que bom para o Sr. Hiki. Ele e a Sra. Funabi aproveitaram muito a juventude e seus ciclos.

Então, Kyoji achou a cerejeira mais jovem, ainda brotando, e enterrou a espada ao lado dela. Para que o fim de um ciclo abra espaço para um novo. Voltou par a vila, pensando em quando ele próprio terá de enterrar a espada de alguém que ama.

Kyoji foi à Academia para cumprir sua missão – e o mero visual do prédio já lhe causou uma náusea, lembrando das infinitas provas em que fora reprovado – e encontrou um bando de crianças empolgadas, dando socos entre si, se empurrando e brigando. O jovem Genin correu para apartar a briga, mas, para sua surpresa, aquilo tudo era parte do jogo deles. “É imaginação, tio! A gente tá fingindo ser ninja! A gente quer ser ninja! É!!”, disse um moleque de pouco mais de cinco anos. Os amiguinhos gritaram juntos e continuaram a briga.

O Genin deu um passo para trás. Já era sua quinta missão, e todas as anteriores não tiveram absolutamente nada de violento. Ele era efetivamente um ninja. Estava ajudando o povo da vila. Mas a atitude das crianças deixava muito claro: o único imaginário de um ninja é um de violência. Não há a ideia de shinobi sem a ideia de uma arma humana, algo feito para machucar. Brigar.

Pois então Kyoji parou e pensou no que fazer. E logo ficou claro. Disse em voz alta: “É isso que vocês querem conseguir fazer?”, e performou o Henge no Jutsu (Rank E), assumindo a forma do menino de cinco anos que havia falado. Nessa forma, jogou sua shuriken para o alto, deu um salto para trás e pegou o projétil ainda no ar. Caiu no chão feito um herói. Todos eles pularam e gritaram, uníssonos: “É!!!”.

Então o Genin sorriu. “Pois vamos começar o treinamento agora mesmo!”. Kyoji colocou os meninos em fila indiana e seguiram para a Vila.

No decorrer do dia, ajudaram o velho Tsurui a carregar o leite, ajudaram o Sr. Fukubi a organizar suas vendas, passaram para tomar chá com o Sr. Hiki e ajudaram o Sr. Rikkin a arrumar suas plantas para vender. Todas as pessoas que Kyoji ajudou em suas missões anteriores.

Quando chegou a noite, estavam todos exaustos, e, os meninos, especialmente frustrados. Um deles fez o sinal de mãos do cavalo e gritou: “Henge no Jutsu!”. Mas, obviamente, nada aconteceu. Todos riram dele, e a criança, avermelhada, se irritou com o Genin. “Tio, você falou que a gente ia treinar!! Que a gente ia sentir na pele o que é ser ninja! Eu só trabalhei de graça!!”.

Kyoji riu e se explicou. “Bom, esse foi o meu trabalho da semana. Ajudar o Sr. Tsurui, Fukubi, Hiki, Rikkin. Isso que é ser um ninja. Servir à sua vila. Essas habilidades especiais que nós possuímos não servem para brigar. Servem para proteger quem confiou na gente.” Os meninos pausaram. Pensaram na fala do jovem ninja. E concluíram: “Que liçãozinha de moral mais capenga!”, e voltaram frustrados para suas casas.

Mesmo assim, Kyoji sentiu que disse algo de importante, porém também descobriu algo importante.

Esses dias fazendo bicos pela Vila não são o dever de um shinobi. Uma missão de rank D não é o dia a dia de um ninja experiente. Missões de rank A, rank S, são todas violentas.

É inescapável. Ser um shinobi implica em sujar as mãos de sangue. Servir à Vila como uma arma, mais que um escudo. E agora, o Genin sentia o vento quente de uma noite de outono lhe cruzar, enquanto se fechavam as cortinas sobre esse tempo bom em sua vida em que não precisou se preocupar com nada além de resolver pequenos problemas.