Papéis amontoados um sobre o outro formando pilhas e mais pilhas de documentos e relatórios que pareciam não ter fim; entradas e saídas constantes de pessoas com rostos completamente esquecíveis do gabinete já havia se tornado uma tarefa tão maçante que muitas vezes já havia cogitado proibir essas “visitas” indesejáveis; enfim, a vida de Kazekage seria muito mais prazerosa para Shüra se houvessem tentativas constantes de assassinato a sua pessoa. A falta de qualquer tipo de aventura feria seu ego que simplesmente tinha que aceitar e se acomodar com uma vida de escritório.

Era aproximadamente duas da manhã e um quarto de hora, sua porta havia sido aberta novamente e por ela entrara um dos funcionários do gabinete - não há necessidade de descrevê-lo aqui para os leitores, mas saibam que assim como dito anteriormente, sua aparência era extremamente esquecível e sem nenhum aspecto digno de narrativa - em suas mãos trazia mais uma pilha de documentos para serem preenchidos e analisados pela Sombra. — Deixe aqui na mesa, ali mais no canto onde tem um pouco de espaço. Isso, bem ai, obrigado. — Shüra suspirou, já fazia cerca de três noites que ele não dormia e seu corpo, mesmo que divino, sentia o que o excesso de trabalho poderia causar. — Vá para casa e tire o dia de folga amanhã, agradeço pelos seus serviços. Está liberado. — O rapaz agradeceu com grande felicidade o Hachidaime e saiu pela porta.

Todos já haviam partido e o Pulcro era a única alma que ainda estava naquele edifício. Sozinho. Seus olhos cansados o alertaram de que não aguentava mais olhar para aquilo que estava a sua frente e seu corpo clamava por descanso, logo ele cedeu. Organizou as pilhas como de costume, olhou seu chapéu, mas o manteve ali mesmo repousando sobre a cadeira que anteriormente estava sentado. Saiu.

Andando pelas ruas que estavam vazias e onde todas as casas já dormiam, viu em uma esquina algumas luzes acesas, se aproximou e notou que era um pequeno recinto de jogos e bebidas - um local que ele não frequentava, mas como estava cansado e sentia a necessidade de uma bebida, resolveu entrar.

Ao momento que cruzou a porta, todos os que estavam ali presentes - que não eram muitos - olharam assustados para o Kazekage, imaginando que seriam punidos ou algo do tipo pelo que consideravam ser um tirano inacessível e inabalável. O pulcro sequer tentou falar algo, apenas sorriu para todos e se dirigiu para o balcão, onde viu um homem de grandes madeixas negras que estava postado à frente de algumas canecas e garrafas já vazias, com muita dificuldades o Hachidaime conseguiu identificar aquele que havia tomado sua curiosidade e sentou-se ao seu lado. Fez um gesto para o homem que atendia e pediu um sake. — Faz muito tempo, Gin.

O álcool e sua natureza paradoxal de ser a causa e a solução de todos os problemas.

As vezes o silêncio das suas acomodações naquele bairro de meia-tigela, mesmo que extremamente pacífico, lhe trazia um certo desconforto: quase uma ansiedade desgarrada. As vezes era assim, o corpo em descanso de repente repleto da necessidade de algo que ele sabia que não deveria ser adquirido — ou ao menos, achava que sabia. As vezes ele cedia ao sentimento e resolvia se erguer do túmulo da procrastinação em prol de uma jornada que o matava lentamente, dia após dia. As vezes ele dizia para si mesmo que logo mais estaria de volta, e as vezes, não voltava.

As 'vezes' já haviam vencido aquela batalha há muito tempo, mas ele, mesmo sem perceber, lutava naturalmente pelo retorno do sempre. Mas não o sempre desconforto ou o sempre descaso, e sim o sempre viver. Naquela mesa de mar carcomida pelo tempo e pelas inúmeras brigas que ali já haviam tido palco — e por que, também não, aquelas que ainda estavam por ter? — o desiludido encarava mais uma vez o vazio de seu copo, aprisionado em um mundo repleto de ideias e alheio às conversas abafadas — e ao mesmo tempo altas — daquele estabelecimento moribundo.

Sua visão estava levemente turva, mas dado seu histórico, era um efeito colateral já facilmente ignorável para ele. Na percepção que tinha de si mesmo, ele era apenas mais um precário ser entre tantos tão semelhantes: com os mesmos olhares bambos, feições tortas e atitude livre. Aos olhos do Oitavo, no entanto, havia algo de diferente: bastava o tempo dizer se era algo de valia ou apenas mais um defeito para sua longa lista. — Shinigami Branco. — Gin coçou o olho direito em um movimento involuntário, relativamente surpreso com a presença do atual líder da Areia em um muquifo como aquele. — Veio me dar esporro sobre aquele dia que dormi na calçada usando uniforme? — Seu dedo ergueu-se na altura da cabeça, indicando ao garçom que desejava mais uma garrafa de saquê. — Porque se for isso, te garanto que desde aquele dia eu nunca mais bebi vinte e cinco latas de cerveja.

Só vinte e seis pra cima.

Considerações:

Seu pedido havia sido servido e logo o pulcro o tomara em suas mãos, ingerindo-o de maneira calma e delicada; seu espírito já estava completamente tomado pelo cansaço e seu corpo - que agora agia como se estivesse no automático - suplicava por meio de cada músculo o descanso necessário e tão merecido. Ignorato le tue esigenze.

Lado a lado, Gin e Shüra já não se viam a muito tempo e não interagiam normalmente havia mais tempo ainda. Ambos tinham sua visão já turva e a percepção alterada, um pela bebida e outro pela extrema fadiga de sua mente e seu corpo. O Hachidaime relaxou e desfez sua postura de imponência costumeira, demonstrando clara fragilidade e tranquilidade naquele momento; pousou seu copo à sua frente e brincou com seu indicador na borda do mesmo. — Não estou aqui para te dar esporro ou chamar sua atenção, amigo. — Ele fez uma pausa brusca em sua fala e também em seu dedo, a Sombra parecia escolher com cuidado suas próximas palavras. — Posso te chamar de amigo, senhor Gin?

Seus cabelos estavam extremamente rebeldes naquele momento, extremamente mais armados do que o costume, possuía pontas duplas e pareciam brigar entre si. O Uzumaki levou as mãos até ele e os colocou atrás de suas orelhas com grande vergonha e com seu ego completamente ferido, afinal ele se sempre buscou manter as aparências em todos os momentos, porém agora se via em um estado que ele considerava deplorável mesmo que os outros ainda o vissem belo e apresentável.

Ele levantou seu dedo e tomou a atenção do bartender, com o mesmo indicador ele apontou para seu copo de maneira que exigia que ele fosse preenchido novamente; sem pestanejar e tomado um pouco pelo medo de ter o Hachidaime Kazekage em seu estabelecimento, o homem rapidamente se prontificou a cumprir o pedido, ou melhor, a ordem. O Shinigami Branco olhou rapidamente para o companheiro que estava a seu lado e sentiu uma certa nostalgia nesse reencontro. — Sabe, lembro que no início da minha vida como Shinobi eu tinha certeza que você seria o sucessor da Rukia… eu tinha certa inveja de você e hoje vejo que ainda tenho, talvez pela sua liberdade.

Shüra ingeriu mais um pouco de sua bebida e fixou seu olhar ao fundo de seu copo enquanto olhava seu próprio reflexo dentro do sake, reflexo esse que se transfigurou na imagem da criança que outrora ele foi. — Por onde você andou durante esse tempo todo? A última vez que nos vimos foi naquela missão em que você me abandonou. — A Sombra sorriu, não guardava rancor nenhum, muito pelo contrário, ele via a cena de forma cômica.

O contraste do Oitavo para com o estabelecimento praticamente queimava os olhos: um ser constantemente referenciado como uma literal divindade em ascensão em meio à meros mortais que não faziam esforço em tentar disfarçar a incredulidade que portavam ao observar uma cena como aquela. — Jamais me passou pela cabeça que tu bebia. — Declarou, tragando mais um profundo gole do saquê recém servido pelo barman. Gin havia perdido as contas por volta do décimo quinto copo — e isso tinha sido a pelo menos uma hora atrás. — Pode me chamar do que quiser, Shüra. Deve saber que eu não sou dos mais aficionados por formalidades. — O fato do Shinigami Branco estar ali presente por mera coincidência e não para fazer pontuações negativas à respeito das condutas questionáveis do jonin era tão aliviador quanto era esquisito. — E senhor tá no céu. Não sou tão velho assim, guri. — Suas olheiras e feições caídas, no entanto, pareciam gritar o contrário.

Gin observou com cuidado os trejeitos do Uzumaki: desde a forma como milimetricamente ajeitava a composição de seus cabelos encaracolados, a como ordenava de forma sútil, mas ameaçadora, o homem responsável pelas bebidas, como se a pior das punições fosse cair sobre ele caso cometesse algum pequeno erro. Tais atitudes, contudo, não pareciam acontecer quando este se direcionava ao jonin da areia: o infame complexo de divindade quase parecia cair por terra. O ninja deixou um pequeno riso debochado escapar-lhe pelos lábios ao ouvir a opinião de Shüra sobre quem ele acreditava que seria o sucessor da Sétima. — Pode continuar tendo inveja de mim, amigo, mas pode ter certeza que minha liberdade não é maior do que ninguém sentado nesse bar ou vivendo nessa aldeia. — Seu dedo indicador apontou na direção da fileira composta por inúmeras garrafas já esvaziadas por ele. — Posso até ser livre pra escolher o que eu quero, mas sou eterno prisioneiro das consequências.

— Pra ser sincero contigo, eu não lembro dessa missão. Mas julgando pelo meu histórico, eu provavelmente te dei bolo porque tava desmaiado em algum beco por ai. — Uma situação lamentável, de fato — uma que Gin provavelmente deveria pedir por desculpas — mas sua indiferença social já havia atingido um ápice grande o suficiente para que ele, erroneamente, se desvencilha-se daquilo. Sabia de seus erros, e já que Shüra também sabia, não via necessidade de perdão. — Rukia me mandou pra uma puta missão no País da Neve logo depois do Massacre dos Kages. — Recordou-se, por breves momentos, de quando acompanhou a Sétima no evento onde ela fora a única líder a sair com vida. — Quando eu voltei, quem tava sentado no trono era tu. — Gin não era exatamente próximo da falecida Kazekage, mas da mesma forma, também não era exatamente adepto de golpes de estado.

Sua opinião, no entanto, manteve-se enterrada no fundo de sua conturbada (e alcoolizada) mente.

Considerações:

A Sombra da Areia não era vista muitas vezes em lugares como aquele, aquele que usava e exibia com o chapéu marcado com o símbolo de seu país ainda era uma figura um tanto quanto misteriosa para todos ali. Apesar de suas diversas tentativas de se demonstrar alguém gentil e carismático, era evidente que ainda assim havia muito descontentamento e medo das pessoas para com sua figura.

Ele sorriu, mas até seu sorriso estava cansado naquele instante. — Bebo sempre que posso, mas infelizmente tenho que manter as aparências. — Ele puxou um pouco de dinheiro de sua pequena bolsa e entregou ao bartender. — Não seria adequado que o Kazekage fosse conhecido por ser um beberrão. — Sua mão fraca buscou levantar a caneca com grande esforço e levar a mesma até sua boca, virando toda aquela bebida em uma sequência rápida e desenfreada de goles que resultou no esgotar total do conteúdo da caneca em meros segundos. Fez um sinal novamente, desejava ser servido mais uma vez. — Não quis te ofender, Gin. Sinto muito.

Apesar da maneira largada e despojado de poses e ego, era evidente que Gin trazia em seu âmago algo que o tornava especial em relação aos outros, o Hachidaime sabia que ele tinha consigo com um grande potencial pronto para ser refinado. — Todos nós somos prisioneiros das consequências de nossas próprias escolhas… sempre seremos prisioneiros de nós mesmos. — A Sombra lançou um olhar gentil, mas era evidente que em seus olhos não havia brilho qualquer, ao mesmo tempo que seu semblante era afável, também era inóspito.

Seu companheiro buscava se explicar em relação ao seu sumiço na missão em conjunto que tiveram e também por onde o homem andou pelos últimos anos. Ele trazia certa desaprovação em sua voz pela maneira em como Shüra ascendeu ao cargo de Kazekage, era evidente que ser um regicida e um usurpador não era muito agradável para todos, estavam acostumados e acomodados aos tempos em que Suna era apenas uma vila figurante em relação às demais na época de Rukia onde tinham uma falsa sensação de paz enquanto a Areia era apenas usada. — Fico feliz que esteja de volta, amigo. — O Shinigami Branco deu um último gole em sua caneca e se levantou, deu um tapa leve de despedida nas costas de seu companheiro e partiu, mas antes parou brevemente na porta e olhou por cima de seu ombro. — Tenho grandes planos para você, Gin. Espero poder contar contigo, faremos Sunagakure se tornar grandiosa! — Ele então saiu, não para casa, mas de volta para o interior de seu gabinete.

— Eu não me importaria com um Kazekage beberrão. — Declarou, deixando descer pela garganta mais um gole do líquido alcoolizado que ele já não mais fazia ideia do que exatamente se tratava, mas sabia que acalmava suas inquietudes. — Pra ser sincero, eu até me sentiria melhor representado. — Deixou escapar um pequeno sorriso advindo da própria piada, algo relativamente raro vindo de alguém tão vazio quanto aquele homem. Com a presença daqueles dois, o bar poderia muito bem se transformar em um enorme buraco negro, dada a imensidão da escuridão e vácuo portado por ambas as figuras: uma desejava pela morte, enquanto outro se enxergava acima de qualquer futilidade do plano mortal. Um contraste no mínimo interessante. — Não ofendeu, Hachidaime. — Já estava acostumado a ser chamado de velho.

— E talvez seja por isso que as pessoas buscam por algo além delas mesmas. — Complementou o pensamento do Oitavo. — Somos prisioneiros de nós mesmos, mas talvez possamos retirar as algemas dos outros. — Sua filosofia estava misturada ao álcool já a algum tempo, e ele não tinha mais certeza se seus murmúrios aparentemente sábios eram, de fato, algo minimamente compreensível — ou que ao menos, fizesse sentido. O pensamento, no entanto, logo se apagou de sua mente com mais um gole de sua caneca, resumindo o seu estilo de vida: pensamentos seguidos de litros em cima de litros de álcool para esquecê-los.

— Não são todos que dizem isso, mas agradeço mesmo assim. — Estar feliz com a volta de um ninja beberrão e praticamente insubordinado não era lá algo muito comum, mas de certa forma, apetecia o âmago inóspito do homem da Areia. Shura ergueu-se de seu banco, e ainda portando suas belas e delicadas feições paradoxalmente vazias, despediu-se de Gin com um leve toque em um dos ombros, informando que tinha, supostamente, grandes planos para ele. Queria eu ter planos para mim mesmo. O shinobi não respondeu, mas absorveu os dizeres como uma espécie de voto de confiança por parte da figura de maior autoridade da vila — um contrato não escrito ou sequer ditado, mas sim meramente sentido.

Apenas lhe faltava descobrir se aquilo era bom ou ruim.

Considerações: