Fragmento 01/05

 Devemos respeitá-los, pois fazem parte de nós, nossa alma. Somos apenas um. São nossos inimigos é quem precisa temê-los. (Aburame Kaien)

Apenas um tímido rastro de luminosidade ousava invadir aquele quarto, algo tão pequeno e aparentemente frágil que acabava sendo engolido pelo negrume antes mesmo de iluminar qualquer canto daquele lugar, mantendo-se apenas em uma singela fresta próximo à maçaneta anunciando que a noite havia dado lugar ao dia.

O pequeno corpo se encolheu em seu canto, os braços apertaram os joelhos enquanto os olhos azulados focavam-se naquele ponto de luz, sentia que se piscasse por alguns segundos, aquilo poderia desaparecer completamente - como tantas outras vezes - deixando-a se afogar naquele breu que açoitava sua alma; ela não gostava do escuro, e para esconder o real motivo de se encolher em meio a solidão noturna, passou apenas a odiá-lo. Tessie odiava a escuridão, pois lá, no fundo, a garota era apenas uma criança com medo, no entanto, se via obrigada a conviver com seu desespero, dia após dia sendo embalada naqueles dedos negros que acariciavam suas bochechas juntamente com as lagrimas de alguém que pedia socorro em silêncio. Um sentimento pesado demais para um corpo tão pequeno.

Quão grande havia sido seu pecado para que tamanho castigo lhe fosse concedido?

Restava-lhe apenas esperar, o coração tamborilava em seu peito na ânsia de se libertar, qualquer ponto de luz abria caminho para algo ainda maior, sua salvação e, ela sabia que em breve tudo se iluminaria, os passos suaves e o ranger da porta pesada traziam a realização de seus desejos. As lagrimas davam lugar a um largo sorriso quando enfim todo o quarto se iluminava no instante em que a porta se abria relevando uma silhueta masculina, os braços do garoto abriram-se como um convite para ela a arrancando daquele sofrimento, não importa o quão longa fosse a noite, ou quão palpável se tornasse a escuridão que a rodeava, a menina sábia que, cedo ou tarde seu nome seria proferido a medida que o corpo do outro revelava-se em meio aos raios de sol.

Hyoran era sua luz.

Irmãozão, ontem eu escalei uma árvore enooooorme. — Os braços pequenos abriram-se conforme falava enquanto o rapaz dobrava os joelhos para equiparar-se em altura com a criança na intenção de limpar o rosto manchado de lagrimas. Não importa o quão assustadora tenha sido a noite, tão pouco o quão doloroso seu dia tinha se estendido, o irmão mais velho conseguia afastar qualquer sofrimento, dor ou tristeza de seu coração. Tudo ganhava cor com sua presença, ela sabia, nada e ninguém era capaz de lhe machucá-la quando ele estava em casa.

Hmmm. — Murmurou distraído passando um pano úmido analisando cada marca arroxeada que se espalhava pela pele alva.

Essa daqui — Ela puxou a barra da calça direita até a altura da coxa, apontando satisfeita para um dos hematomas. — foi quando eu cai da árvore — Sorria satisfeita orgulhosa de sua breve aventura. Gostava quando podia correr no quintal e brincar - mesmo que sozinha - deitar-se na grama observando o céu, imaginando suas cores em meio a densa nuvem que cobria Kirigakure e os pássaros que voavam livres em meio aquela imensidão que seus olhos não podiam mensurar. Escapou de seus devaneios apenas quando sentiu o toque do rapaz, fazendo-a recuar, assustada. — Irmão, não… — Mas não importa o quanto ela se debatesse, a força do outro era muito maior que a sua, seus chutes e mordidas de nada adiantaram, os dedos da mão esquerda enlaçaram-se aos dela com força, mas não o suficiente para machucar.

Pronto, eu estou bem. — Ele sorriu cutucando a bochecha dela com a mão livre balançando as mãos unidas frente ao rosto da menor.

Irmão idiota. — Fungou abrindo apenas um dos olhos, observando-o, até finalmente encará-lo na intenção de realmente ver se ele estava bem. — Mamãe disse que não posso tirar as luvas. — Choramingou, não oferecendo resistência alguma conforme o outro se livrava da peça negra que cobria a mão da pequena, enfiando o tecido nos bolsos.

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Fragmento 02/05

 Comigo você não precisa disso. Nunca! — Ergueu-se puxando-a pela mão em meio aos corredores da casa, Tessie nunca viu o irmão bravo, mas sabia que algo o irritava ao notar quando ele apertava os lábios. Palavras que ele queria dizer. — Vamos comer? Eu estou morrendo de fome.

Era mentira e a garota estava ciente disso.

Mas existem mentiras que precisam ser ditas, constantemente nos enganamos com falsas promessas, com objetivos e desejos que sabemos, não passam de ilusões que contamos a nós mesmo. Muitas vezes, até mesmo sorrir tornava-se algo ilusório, uma mentira que contamos para nossa alma e coração na ânsia de encontrarmos que nos traga paz, mas isso, no fim, é apenas uma farsa. Mentiras são doces, mas não passam de veneno dado em doses homeopáticas ao espírito que aos poucos se acostuma a falsidade que nos é oferecida até não restar mais nada além de alguém que vislumbra algo ilusório, contudo, a verdade sempre irá reclamar seu lugar de direito, é ela que destrói para só então… Reconstruir.

Tessie gostava daquelas mentiras, trazia para perto de si aquele que mais amava, seus olhos enxergavam perfeitamente, mas seu coração há muito tempo já estava cego. Era melhor ignorar a dor do que encara-la.

Vai ficar três dias como todos os anos, irmãozão? — Eram poucas às vezes que Hyoran estava em casa, não ficava mais do que três ou quatro horas com ela e então retornava para a academia ninja, com apenas doze anos, o garoto realizava missões consideradas perigosas para alguém em tão pouca idade, contudo, havia uma data em particular que o fazia ficar mais tempo do que o de costume. — Posso dormir com você? — Mesmo sabendo qual era a resposta, queria ouvi-lo falar, todos os anos contava cada segundo dos dias para que seu próximo aniversário chegasse logo.

Vamos ter que comprar uma cama maior, da última vez você ficou chutando minha costela a noite toda, seu filhote de urso. — Provocou empurrando o corpo da outra suavemente com o ombro concentrado na tarefa de enrolar em uma espécie de alga salgada nos bolinhos de arroz que ele habilidosamente moldava nas palmas das mãos, arrancando sorrisos da pequena. Ah! Como desejava que esses dias jamais tivessem fim, tudo era tão leve e doce. Aquela felicidade era sua mentira favorita. Até Kyoko aparecer, travando consigo um pequeno fragmento de verdade. O medo.

O que vocês… — Os olhos foram do mais velho e então para a menor, que se encolhia baixando a cabeça. — O QUE VOCÊ ESTA FAZENDO? — Os passos pesados da mulher a tornavam ainda mais assustadora aos olhos de Tessie conforme ela se aproximava, a mão ergueu-se descendo logo em seguida em um tapa sonoro e furioso. Após isso, o silêncio reinou por alguns segundos.

Ela só esta comigo, fui eu que tirei a luva dela. — O rapaz levou a mão ao rosto acariciando a região que recebeu o tapa destinado à pequena, Tessei sentia o irmão estremecer conforme a mantinha um pouco atrás de si apertando-a suavemente contra seu corpo. Ele era sua muralha e proteção. — Logo todos estarão aí, farei com que seja tudo normal como sempre. — Fechou os olhos por alguns segundos e então encarou à mulher que desviou o olhar para a coisinha encolhida agarrada as veste do rapaz. Uma última ameça e então a presença ameaçadora desapareceu na intenção de realizar as tarefas daquele dia tão desesperador.

Não existe nada que amargue mais na alma do que o desespero, o medo e as mentiras que insistimos em contar.

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Fragmento 03/05

 Você se lembra das regras, não é? — Os olhos claros do rapaz encaravam os dela com seriedade conforme ajudava-a a se arrumar, as luvas subiam até a altura de seus cotovelos e a máscara cobria sua boa e nariz.

Não tirar as luvas e a máscara, se alguém se aproximar tenho que tossir e me afastar dizendo que não estou bem. — Já tinha decorado aqueles passos havia anos, uma repetição que se tornou parte de seu cotidiano. As aparências precisavam ser mantidas. — Você vem brincar comigo depois que receber as visitas com a mamãe? — Aquela pergunta também era algo que fazia, anos após anos. — Agora eu consigo subir muito mais alto nas árvores sem você me ajudar, quero mostrar, quero mostrar. — Dentre tantas farsas naquela família, aquela felicidade era genuína. — A mamãe me odeia? — O outro não parou a tarefa que realizava naquele instante, a cabeça balançou negativamente conforme ele mantinha sua atenção voltada ao ato insignificante de amarrar o cadarço do sapato dela. Tessie sabia que aquela resposta era outra mentira, mais uma dentre tantas, mas a pergunta que realmente desejava fazer ficava presa em sua garganta. Percebia no leve estreitar de seus olhos, no maxilar que se apertava e no sorriso forçado o quão pesado eram aquelas mentiras para ele e temia descobrir que a única verdade acreditava ser real, aquele amor entre eles, não passasse de uma mera ilusão.

Irmãozão, você me odeia?

Uma criança de saúde frágil, delicada e facilmente abatida, era assim que a menina era descrita. Enclausurada em um quarto escuro longe de todos apenas para a aparência e reputação de uma família, enterrar boatos, mas as mentiras, elas costumam ser traiçoeiras e muitas vezes cobram seu preço. A menina tentou ser a melhor filha que poderia ser, mas ela jamais poderia se equiparar aquela que se foi. Que culpa ela tinha? Aquele pecado não era seu, por que mesmo após seis longos anos era a que mais estava sendo castigada? Queria gritar tudo o que estava acumulado em seu peito, cuspir aquelas palavras que amargavam em sua boca, verdades que ninguém ousava dizer; mas apenas observava de longe, uma espectadora de sua própria vida; risos que preenchiam a sala em meio a pequena festa de aniversário, mas porque a única que deveria comemorar era a que mais estava infeliz.

Crianças possuem jeitos peculiares de chamar a atenção, algumas fazem birra, outras choram por qualquer coisa, existem as manhosas e Tessie como tantas outras, era uma criança que desejava chamar atenção, não de todos ali, apenas um, bastava que aqueles olhos claros a encarassem e ele sorrisse para ela, tudo ficaria bem.

Ei irmãozão, olhe para mim, estou no alto.

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Fragmento 04/05

 Subiu a árvore que ficava no quintal de sua casa, mais alto e mais alto na ânsia de ouvir a voz masculina chamar por seu nome, abrir os braços para que ela pudesse pular, Hyoran era o único que a entendia. Era sua luz, seu sol, sua salvação e talvez por acreditar tanto no outro que o coração não disparou de medo quando o corpo despencou, por alguns segundos pôde ver por dentre as nuvens densas um imenso céu azulado, lindo e brilhante; os braços abriram-se, era como se pudesse voar. Era como se naquele instante fosse a pequena e leve borboleta que pairava a seu lado, sendo carregada pelos dedos do vento passeando em um imenso campo de girassol. Nem mesmo a dor conseguiu tirar aquela sensação de liberdade que se cravou em seu coração.

Foi a primeira vez que viu o rosto de Hyoran como uma expressão verdadeira, era uma feição que ela não conseguia explicar e então… Escuridão.

Aqueles dias lhe trouxeram paz. Os burburinhos não a entristecia, gostava de ser “a criança quebrada”, a partir daquele dia ele sempre estava ali, com ela. Segurava sua mão, a alimentava, passeavam todos os dias e até dormiam na mesma cama; nunca desejou nada mais do que aquilo, ironicamente, aquela desgraça se tornou sua salvação, mas, até onde tudo aquilo era verdade?

Queria que aqueles momentos se estendesse pela eternidade, a escuridão já não mais a incomodava, podia não vê-lo, mas reconhecia seu cheiro, o tom rouco de sua voz e o abraço caloroso que sempre lhe dava quando estavam juntos, mesmo que dentro de sua alma a sensação de liberdade ainda a estivesse incomodando, era mais uma verdade que precisava engolir para manter de pé aquele seu castelo de ilusões; algo tão frágil que, uma mísera pedra conseguia fazê-lo ruir.

Tess… Como… Conseguiu chegar aqui? — Era como se a voz dele estivesse presa, soava apreensiva.

Ué… Eu estava com fome e vim para cá. — A resposta parecia ser algo normal para ela, e era, havia feito aquele mesmo percurso durante meses que nem se deu conta do que havia acabado de fazer.

Você… — Sentiu as mãos do rapaz apertar seus ombros no instante em que se abaixou para encarar seus olhos. — Esta enxergando?

N-não… Eu conheço o caminho irmãozão, seu bobo. Faço ele todos os dias sem você, esqueceu?

A mãe mudou os moveis de lugar, abriu espaço em algumas áreas para você caminhar. — Os dedos apertavam-se, machucando-a conforme a pequena permanecia em silêncio. — Como? — O corpo foi sacudido suavemente, podia sentir a respiração pesada e quente dele próximo a seu rosto, a mão trêmula que a apertava cada vez mais forte.

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Fragmento 05/05

 Desculpa irmãozão — Fungou levando as mãos aos olhos, esfregando-os tentando afastar as lagrimas. — Eu ainda não vejo… Mas, mas… Eu sinto isso e daí eu consigo saber… Me guiar… — Murmurava conforme sentia os poros do rosto dilatar e a sensação de formigamento surgir em seus braços que foi lentamente liberado pelas mãos que a prendia. — Irmãozão? — O silêncio se estendeu e a menor poderia fingir que não sabia que ele ainda estava ali, mas sentia seu cheiro, o pesar de sua respiração e o formigamento em sua pele. — Eu sei que você esta aí, perto da pia. — Fungou puxando uma cadeira para se sentar, estendendo a mão para alcançar uma maçã.  Estava cansada de fingir. — Um mês depois que cai. Na verdade, no dia que estava subindo na árvore eu estava sentindo alguma coisa, mas eu estava animada demais… — Esperando por você. Completou a frase em sua mente.

Tess, a mãe não pod-

Saber? Eu sei disso. E também sei o que houve com nossos irmãos e o papai. — Tudo aquilo era tão cansativo. — Mas eu preciso que você me treine, o pouco que sabe. Eu já tenho onze anos, irmãozão, o que aconteceu com o Tristan, não vai acontecer comigo. — Essa era uma mentira que insistia em contar para si mesma. — A mamãe achou que por eu estar cega os Kikaichu não iriam se manifestar em mim, por isso relaxou, por isso me deixou de lado. Você também. — Os olhos azulados e vazios ergueram-se na direção do rapaz, deixando escapar algo que jamais ousou perguntar. — Você também me culpa pela morte da Lisa igual à mamãe?

Diferente de tantas vezes que observava as sutilezas da feição do mais velho, nos anos em que não podia mais vê-lo tentou apenas descobrir seus sentimentos por breves sinais, o som de sua respiração, o batuque acelerado de seu coração, o ranger de dentes, mas naquele instante era diferente, como se estivesse sido atingido por algo repentino o rapaz congelou, perdido em seus próprios pensamentos e na confusão de seus sentimentos.

Nem mesmo eles sabem me dizer o que você sente agora... Sua expressão. — Interrompeu o silêncio, braços e rosto coberto pelos pequenos insetos que pareciam querer ir em direção do rapaz, mas ela não se permitiu tocar nele, preferia manter a breve ilusão daquela dúvida e acreditar que aquele amor era real. — Vamos treinar na floresta, quando a mamãe não estiver. — Estendeu a mão direita, palma virada para cima e uma pequena nuvem de insetos se fez ali. — Perto da grande árvore morta, logo após o rio. — E conforme falava, figuras do que era dito se formavam na palma de sua mão. — Eu os entendo e eles me entendem. É muito mais do que eu posso explicar, irmãozão. — Voltou a encará-lo, permitindo que os Kikaichu retornassem para sua pele escondendo-se em seu corpo. — Não se preocupe, começarei a cobrir meus olhos, sinto formigar no meu rosto quando encaro vocês, eles percebem, vocês se sentem desconfortáveis com meu olhar, não é? Olhos vazios, iguais os de alguém que já morreu.

Havia tantas coisas que a garota não conseguia explicar, o quão forte aquele laço se tornava à medida que o treino progredia, não era o simples fato de ser uma Aburame, mas aqueles insetos permaneceram escondidos dentro dela durante anos e era como se conseguissem sentir a sua dor, seus medos e receios. Ia muito além da sincronia de um clã e, conforme o controle de seu chakra tornava-se cada vez mais preciso, seu aprendizado, sua ligação parecia se amplificar, um controle quase tão natural. Percebeu que não precisava de seus olhos para acontecer tudo o que estava a seu redor, as sensações iam muito além da visão, aquilo não iria limitá-la. Mas, no fundo, ela sentia falta daquele sorriso repleto de mentiras.

O mundo abria as portas para ela de uma forma diferente, talvez um pouco mais cruel e fria, contudo, a menor saboreou a escuridão durante longos anos de sua vida, já era uma companheira conhecida, medo que temida e, ao mesmo tempo, odiada. Hyoran desapareceu 8 meses depois da garota decidir se matricular na academia ninja, mesmo que de forma tardia, isso pouco importava. Não era a ausência do mais velho que a entristecia, era até hoje não saber a resposta daquilo que apenas ele poderia responder.

Irmãozão, você me odeia?

(code) awona