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A MÃO PÁLIDA, com muito cuidado, colhia algumas flores.

　　　O meneio cauteloso dos dedos finos fazia a senbon cortar os caules. O metal reluzia suavemente com os poucos raios que transpassavam a neblina, era um dia ameno na Névoa. Não havia sinal de chuva, nem de ventania. Uma pausa no ritmo caótico que aturdia as cinco grandes nações.

　　　Nos campos floridos dos arredores da vila, Haru dava curso à colheita inacabável de especiarias para seus experimentos.

　　　Alguns dias se passaram desde o último bote da marca. Mas o veneno ainda estava lá, Haru o sentia correr por suas memórias, corrompendo as lembranças mais calorosas que ela guardava. As poucas lembranças que se valia recordar.

　　　E, para sua frustração, diferente dos venenos das flores manejadas pelos seus dedos, a toxina da marca não era possível de ser manipulada. Ela tentou, inúmeras vezes tentou. Com experimentos, com estudos, com técnicas diversas, com a arte de selamento... com tudo fora e dentro de seu alcance.

　　　Mas nada serviu.

　　　Não havia antídoto contra a peçonha da serpente gravada no seu pescoço.

　　　No entanto, estar em contato com a primavera fazia a pequena Watanabi relaxar. Separava as flores extraídas em um cesto de vime entrançado à mão. Essa atividade lhe fazia bem.

　　　O aroma perfumado das flores. O sopro da brisa refrescante. O silvo da serpente companheira.

Considerações:

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　　　Shiro rastejava-se pela grama, subia e descia do cesto, contornava os joelhos de Haru que se mantinham firmes sobre o solo, e repetia tudo de novo.

　　　O orvalho estava nas ramagens, suscitado pela manhã fria da Névoa. A garota inspirava profundamente, sentindo a umidade nas narinas e nos dedos, deixando a primavera encher seus pulmões e banhar suas mãos.

　　　E então se ouviu uma melodia.

　　　Não era como o uivo do vento. Era torneada, compassada e expressiva. Uma nota de cada vez era soada; uma corda de cada vez dedilhada. Escutava-se as vibrações perderem força até desaparecerem no espaço, uma pausa de alguns segundos de silêncio, então outra nota se desgarrava.

　　　As notas ecoavam como quem anda a passos lentos.

　　　Haru demorou milésimos de segundos para assimilar a música que subitamente surgia. Shamisen, pensou, atenta, reconhecendo o tão característico som do instrumento de três cordas. De onde vem?

　　　Ficou imóvel, e seu silêncio taciturno foi acompanhado pela serpente que reduziu o volume do silvo. A cabeça permaneceu baixa, mirando o caule da flor que estava prestes a cortar. Não queria denunciar sua desconfiança, preferindo figurar a imagem de uma menina desavisada.

　　　É mais fácil enganar uma presa quando ela pensa que é o predador.

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　　　Apenas os olhos violeta se moveram, ziguezagueando. Buscavam o possível precedente das notas lançadas, o menestrel que puxava as cordas, falhando no ato por não encontrarem indícios de alguém nas redondezas.

　　　O volume do shamisen aumentava, mas a grama não se curvava em volta, nada a dobrava, nem mesmo as folhagens dos arbustos e árvores do entorno se mexiam num ritmo diferente do habitual proporcionado pelo vento.

　　　Uma melodia fantasma, pensou Haru. Outra artimanha da marca?

　　　Respirou fundo e resolveu, enfim, erguer a cabeça. Quando o fez, no entanto, arregalou os olhos ao deparar-se com uma mulher a sua frente. Bem, bem de perto.

　　　O shamisen estava nas mãos de dedos longos daquela mulher, que escapavam das mangas pesadas do volumoso quimono que vestia. Ela segurava o instrumento de madeira escura com tamanha graciosidade que ele aparentava ser leve igual a uma pena.

　　　Os orbes violeta fremiram e expressaram um grito atônito. Como ela apareceu tão de repente? questionou-se Haru. Mas não demorou a se recompor, regrando a própria respiração para obter maior controle de suas funções corporais.

　　　De semblante arrebatador, a mulher fitava a pequena. Uma mão no braço do shamisen; outra encostando nas cordas com uma bachi. Então, com o puxar das três cordas de uma só vez, um último acorde agudo e estridente foi tocado.

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　　　Haru sentiu um calafrio enquanto seu esqueleto vibrou reagindo ao som. Ainda assim, tentou manter a concentração. Ela esquadrinhou a mulher: um rosto belo e aquilino, de tez branca e imaculada, longos cabelos pretos e olhos de um amarelo aceso como o sol.

　　　Encará-la era difícil, pois seu olhar era mais afiado do que a senbon que manuseava, essa que tentou esconder abaixo dos dedos, preparando-a para desferir um golpe furtivo.

　　　Shiro deu a volta pela grama, sorrateiramente, serpenteando para trás da mulher a fim de cravar suas presas no calcanhar dela, que ficava alto devido à sandalha de madeira e coberto pela barra do quimono que descia até se arrastar no chão.

　　　Mais um acorde tocado abruptamente.

　　　A serpente albina correu, distanciando-se, afugentada pelo som do shamisen que reverberou na vibração certa para expurgá-la dali.

　　　Haru acelerou os batimentos cardíacos através de uma respiração frenética, conscientemente liberando sua adrenalina para um bote com a agulha oculta.

　　　A mulher sumiu. E Haru acertou o vento.

　　　— É assim que trata uma visita? — Ecoou uma voz feminina e musical.

　　　A kunoichi identificou a presença que repentinamente surgiu às costas. Virou-se e lá estava a musicista misteriosa.

　　　— Mortífera como uma serpente. Ah, eu gosto disso — continuou a mulher. E tocou mais uma nota com as três cordas.

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　　　— Quem é você? — perguntou Haru, arqueando-se para um possível combate.

　　　A mulher riu. — Pode desfazer sua postura. Não vim aqui para vê-la lutar. — A voz dela era tão melodiosa e compassada quanto o som do shamisen. — Vim para prepará-la para a verdadeira guerra.

　　　Um suspiro treinado para revigorar os pulmões escapou dos lábios de porcelana. Haru esperou o retorno de Shiro, que se rastejava lentamente ao encontro de seus pés, para em seguida fugir dali. E pensou: Preciso voltar para a vila, mas ela já se demonstrou ser rápida e imperceptível. Como posso despistá-la? Se eu...

　　　— Basta de pensamentos! — disse a mulher. — Vejo através de seu semblante, sinto as suas discussões internas, até mesmo as adormecidas no seu subconsciente.

　　　— A marca — retrucou Haru —, não é? Você é mesmo real ou é apenas outra imagem-espelho que apareceu para me corromper?

　　　A mulher expressou um sorriso ferino, pareceu gostar do enfrentamento da garota da Névoa.

　　　O shamisen foi tocado de novo.

　　　— Não está devidamente preparada para receber repostas — a musicista completou. — Portanto, sem questionamentos!

　　　Shiro alcançou a perna de sua companheira, enrolando-se no tornozelo dela.

　　　Haru dobrou os joelhos e cotovelos, cerrou o olhar. O chakra agitava no interior do corpo franzino. Shushin seguido de Kirigakure, pensou, arquitetando a estratégia de fuga.

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　　　Aqueles dedos longos firmaram-se na bachi e correram pelas três cordas do instrumento. Mas agora os movimentos eram de vai e vem produzindo uma melodia forte, encorpada, diferente das notas soltas.

　　　O novo som do shamisen ecoou nos ouvidos de Haru numa vibração que a fez tremer, perder o controle das próprias articulações e cair de joelhos, prostrando-se diante da música tocada.

　　　Estarrecida, a garota sentia as vibrações batendo forte na sua cabeça. Ela ofegava e sua visão ficava turva.

　　　— Em momento algum eu lhe dei a escolha — disse a mulher —, de recusar a preparação.

　　　Haru tentou recobrar seus sentidos, mas sequer foi capaz de controlar a respiração. Então, gradativamente, o cenário foi esmaecendo.

　　　O mundo ficou escuro.

　　　Os olhos violeta enxergavam apenas a musicista e o shamisen que continuava a tocar.

　　　De repente, a música cessou. A mulher sumiu. E a imagem trajada do suntuoso quimono reapareceu face a face com Haru.

　　　— Você deve aprender a sentir — afirmou a mulher.

　　　Ela levantou a mão que empunhava a bachi, erguendo a grande palheta na direção do firmamento. Então a desceu, velozmente. Mas antes que pudesse atingir o rosto de porcelana da garota, reduziu a velocidade, apenas afastando os fios pretos-azeviche da franja para encontrar a testa de Haru.

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　　　— Neste momento, estou liberando os seus chakras. Parte deles está atrofiada — comentou, pressionando a bachi contra a testa da garota. — Tanto tempo vivendo através da racionalidade que nunca notou o mundo a volta com outros olhos.

　　　Enquanto a boca era incapaz de reproduzir som, os olhos violeta se arregalaram naquele momento. A Watanabi experimentou uma enxurrada escorrer do centro de sua testa e banhar seu corpo por inteiro. Ainda de joelhos, conseguiu sentir o solo abaixo de si, embora fosse incapaz de vê-lo.

　　　Ela o tocou, tentando agarrar a grama. E suas pupilas dilataram-se no meio do violeta, buscando enxergar através do breu intenso.

　　　A mulher esboçou um semblante afiado. E disse:

　　　— Com os pontos devidamente alinhados, será capaz de perceber as coisas de outro modo. Mas é claro, isso exige tempo. — Ela virou as costas e, em seguida, foi consumida pelas sombras. Apenas sua voz sobrou, ecoante, vinda de todos os lados: — Tempo esse que não temos. Então dê o seu melhor. Encontre-me!

　　　Haru titubeou, encarando o escuro. Ela reouve parte dos sentidos. Aproveitou para forçar-se a ficar de pé. Apoiou-se nos próprios joelhos até aprumar a postura. Então, à procura de Shiro, olhou para baixo e, sem sucesso, não a encontrou. Pra onde essa mulher me trouxe?, perguntava-se.

　　　Respirou fundo. Fitou em volta com obstinação, buscando esquadrinhar o escuro, o silêncio absoluto. Mas sem o céu, sem a terra, sem as árvores, sem o vento... sem qualquer referência era impossível continuar se apoiando no racional.

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　　　É isso o que ela quer, a pequena constatava. Menos razão e mais emoção...

　　　Haru já estava entendendo que a marca queria tirá-la do controle de suas ações. Todavia, aprender a sentir poderia ser útil, além de, aparentemente, ser a única maneira de voltar à Névoa.

　　　Ela soprou o ar de seus pulmões com um suspiro, logo inspirou profundamente. Fechou os olhos; não precisaria da visão, pois já estava nas sombras. Em seguida, concentrou-se.

　　　O chakra de Haru se agitou outra vez. Porém, agora, as labaredas espirituais estavam ordenadas, em harmonia. A jovem Watanabi experienciou o tino mais aguçado de suas emoções, originando sensações inéditas dentro de si.

　　　Mesmo de olhos fechados, ela foi capaz de enxergar o campo. Havia energia nos arredores. Então ela recorreu à provisão de chakra da vida por ali.

　　　Chamas se acenderam em sua mente. E ela sentiu, enfim sentiu os olhos do seu chakra frontal se abrindo. A nova visão aflorava.

　　　A mulher do shamisen esbanjava uma aura única, avassaladora, que vertia quantidades abundantes da energia espiritual. Ela não estava longe. Poucos metros separavam as duas.

　　　Haru caminhou, cautelosamente, na direção daquela poderosa assinatura de chakra.

　　　O shamisen voltou a tocar.

　　　— Conseguiu encontrar a direção certa. — Era aquela voz melodiosa. — Esse foi o primeiro passo, mas ainda falta um.

　　　Haru abriu os olhos, franziu o cenho, perdendo um pouco da compostura. Mais um passo?

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　　　Dessa vez, a presença da mulher não mais passava despercebida, seu caminhar nas sombras tornou-se como um vulto, um rastro azulado diante dos olhos da mente de Haru.

　　　A mulher fez sua imagem presente de novo, diante da pequena kunoichi. Mais uma vez, ela tocou com a bachi na testa de Haru. E disse:

　　　— Aqui. Concentre suas energias aqui. Sele seu chakra e guarde-o para o momento certo.

　　　Haru deu um passo para trás. — Momento certo? — murmurou.

　　　— Sem questionamentos. Apenas faça!

　　　A menina notou naquela figura mística os longos dedos da outra mão tensionando uma das cordas do shamisen: havia uma ameaça velada. Então calou-se. Um acorde e toda a realidade poderia mudar. Era melhor ficar quieta enquanto ainda detinha controle da própria consciência.

　　　As pálpebras voltaram a cobrir os olhos violeta. A garota se concentrava nas sensações de seu chakra, nas labaredas vivas que chamuscavam em seu interior. Enquanto isso, ela pensava: Devo concentrar energia na minha testa para então a selar ali? Que tipo de selamento seria esse? Uma técnica de contenção? Ou...

　　　— Menos pensamentos, garota — impôs a mulher. — Sinta mais e questione menos.

　　　Haru suspirou.

　　　O verdadeiro treinamento para ela não era a concentração, mas sim deixar que sua mente ficasse limpa. Permitir-se levar pelas emoções, sensações, experiências... Inspirações e expirações, sem pausas reguladas, comedidas a fim de proporcionar a cadência certa para que o fluxo de chakra fosse contínuo.

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　　　Como o estado de lâmina da água, o espírito de Haru perfilou os caminhos energéticos, confluindo para o chakra frontal, localizado no centro da testa.

　　　A convergência despertou uma sensação de labaredas incendiando sua testa. Contudo, embora sentisse o calor, a garota não sentia arder.

　　　Observando a cena, a misteriosa mulher tocou algumas notas de seu shamisen, fazendo soar em baixo volume uma música reconfortante.

　　　Ao escutar os acordes, Haru sentia-se motivada, e seu transe aprofundava-se ainda mais. A cada vez que uma corda do instrumento vibrava, mais intenso se tornava o elo energético que tomava forma na testa da pequena.

　　　— Está na hora do selo — sussurrou a mulher.

　　　Haru resgatou um pouco de consciência e seguiu o que lhe fora proferido.

　　　E então, do espiritual para o físico, uma marca arroxeada surgiu acima do chakra frontal da garota.

　　　Outro sorriso afiado no rosto majestoso. Outras notas vívidas do shamisen. E a mulher disse:

　　　— Aí está, filha da Névoa. Agora, basta aguardar.

　　　As pálpebras finalmente descobriram os olhos violeta. Haru quis voltar a questionar a mulher, mas ela não estava mais por ali, sequer sua assinatura de chakra se fazia presente.

　　　A música efêmera havia sumido tão subitamente quanto surgiu.

　　　Mas o escuro foi embora junto de sua evocadora.

　　　Haru pôde admirar os arredores de sua vila outra vez, e sentir o frescor do abraço da neblina. O canto de Shiro voltou a soar, a serpente estava ao redor dos seus pés.

　　　— Você jamais me deixaria — disse Haru —, e eu jamais te deixarei.

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