I




A energia caótica do Reino Sombrio o cercava por todos os lados. A sensação todas as vezes que pisava lá era como se as portas do inferno se abrissem e ele fosse abraçado por uma densa energia espiritual que parecia querer estrangulá-lo. Deuses não se curvam a ninguém, no entanto, sua primeira vez lá fora quando ousou pedir aos senhores do Jigoku que lhe ensinassem a arte sábia e por lá ficou durante alguns dias até que dominasse. Sua presença, no entanto, ainda atraia olhares de todo tipo de criatura que lá vivia.

　　Estava sentado no mesmo campo aberto onde fora elevado aos limites, a beira de um lago de água alaranjada que costumava emanar fumaça e ele jamais teve a curiosidade de saber o motivo. Suas mãos se abraçavam sutilmente repousadas sobre as pernas cruzadas uma sobre a outra. Em um lugar como aquele, a energia natural era bastante mais abundante e o Sexto costumava meditar por lá toda vez que tinha um descanso de seus afazeres.

　　Sentiu uma lufada de ar quente em seu rosto como se alguém erguesse uma tocha ali, mas logo passou; ele abriu um dos olhos sabendo que não estava sozinho e deparou-se com uma criatura alta, com músculos avantajados e cujo rosto parecia uma máscara de porcelana com um sorriso macabro de dentes amarelados e pontiagudos. O outro sentava-se em uma posição semelhante à sua e não parecia interessado em atacá-lo.

　　— Arashi Warui. — o demônio pronunciou seu nome com a voz rouca. — Seu nome é uma lenda entre os homens e mesmo as criaturas mais temidas dos diversos reinos o respeitam. — viu-o baixar a cabeça como se fizesse uma reverência. — É uma honra, senhor. Me chamo Hannya.

　　— O prazer é meu. — sua voz manteve-se plácida, ainda que estranhasse um pouco a postura do outro. — Seu rosto se assemelha a algumas máscaras que vemos no reino dos humanos, embora as tenha visto replicadas de formas diferentes.

　　— Permita-me elucidá-lo então, Mizukage-sama. Uma pequena amostra de como o reino dos homens e o Reino Sombrio não são tão desconectados quanto aparentam.

II




　　— Os humanos tem um apreço pelas máscaras que remetem a minha face por eu ter nascido dos sentimentos eles, meu caro.

　　Warui arqueou timidamente uma das sobrancelhas enquanto ouvia, mesmo que soubesse que a explicação não pararia por ali. Não abriu mão da posição que adotava para meditar e ainda que estivesse atento à voz do demônio, permaneceu no processo de absorver a energia natural do Reino Sombrio. Seu corpo se preenchia com o caos emanado por cada centímetro do lugar.

　　— Ódio, amor, ciúmes, paixão; todos esses sentimentos tão mundanos e tão puramente humanos são capazes de transformar mesmo o mais plácido dos homens ou a mais doce das mulheres num verdadeiro monstro. — a explicação veio sem demoras. — E o mundo de vocês está repleto de pessoas com corações apodrecidos por frustrações, que os deram forças para fazer coisas inomináveis, tirando vidas de inocentes a troco de um fútil desejo de vingança por vezes.

　　— E um deles até mesmo ousa apresentar-se como deus. — pensou em voz alta, lembrando-se do mascarado na Nuvem, cuja descrição era bastante compatível.

　　— A partir das trevas que abraçavam as almas de todas estas pessoas, eu fui personificado no Reino Sombrio e ganhei vida para que pudesse andar até mesmo no reino de vocês.
　　
　　Seus olhos mergulhavam nas frestas que emanavam um brilho perolado. Ele não sentia-se perturbado por estar diante daquela criatura e a breve história de sua origem não condizia com a natureza respeitosa que se apresentava ali. Lembrou-se das palavras do velho Watanabi, seus avisos repetitivos para que não assinasse aquele contrato com seu sangue.

　　— Ouvi histórias sobre os habitantes deste reino e devo dizer que você não se enquadra nas minhas expectativas. — foi breve.

　　— Os homens e mulheres que vieram aqui antes de você tinha lá sua força, mas nenhum digno de respeito dos demônios mais evoluídos.

　　Hannya se levantou calmamente, pondo-se sobre as compridas pernas e estendendo uma das mãos para que Warui pudesse se levantar também. Dispensou a ajuda e se colocou de pé sozinho, notando a diferença considerável de altura entre os dois. O mascarado recolheu sua mão, compreendendo o recado silencioso.

　　— Você, no entanto, já tem seu nome bastante falado por aqui. — o outro deu-lhe as costas. — Permita-me mostrá-lo, Arashi Warui.

III




　　— Note que o senhor recebe olhares por onde passa em nosso reino, Warui-sama. — Hannya explicava com voz calma enquanto guiava o caminho. — A grande maioria dos habitantes daqui não só o conhece como também o teme, mas não é exatamente medo; eles o admiram. A forma como batalhou com a grande besta de dez caudas ecoou para além das Cinco Grandes Nações.

　　Os passos de ambos cessaram quando se depararam com os três gigantescos demônios furiosos, sentados lado a lado com as respirações calmas e controladas, diante de uma grande cachoeira cujo som da água estralando parecia relaxá-los. Por um instante, pensou que estivessem dormindo e estava por deixá-los em paz e mesmo dar as costas ao mascarado. Um rosnado pareceu ser uma resposta para o questionamento silencioso, vindo da criatura que abraçava o bastão espinhoso, o apoiando no ombro esquerdo.

　　Aproximou-se mais ainda do trio, sabendo que nada que fosse falar teria uma resposta. Mesmo quando os invoquei num campo de batalha, não pareciam dispostos a seguir minhas ordens, pensava, lembrando-se também que jamais sequer houve menção de alguma reação desobediente dos dokis.

　　— Eles podem não externar em palavras, mas estas criaturas mostram seu respeito através de gestos e atitudes.

　　— Não me atacar é uma delas? — Warui nem ao menos esperou um exemplo.

　　— Perfeitamente, senhor. — a resposta veio de imediato. — Tente, porém, ordená-los com sua voz. Se eles o obedecerem, tem três leais aliados; do contrário, são bastante difíceis de domar.

　　Eu havia lhes dito para não fazerem nada quando fui ao Rio, a memória veio clara como se estivesse vivendo o momento outra vez. Teriam eles me obedecido de fato?

IV




　　Ele fechou os olhos por alguns segundos enquanto deixava a energia do Reino Sombrio moldar seu corpo por inteiro. Sua pele tornou-se pálida enquanto seus longos fios de cabelo ganharam um tom alvo como a neve. O par de chifres vermelhos se ergueu de sua cabeça e seus olhos tinham a cor do sangue quando suas pálpebras se descolaram. Para domar os demônios, devem me enxergar como um deles; Warui despiu-se da aparência humana e moldou-se como um verdadeiro habitante daquele reino.

　　— Levantem-se.

　　A voz firme da Sombra soprou até os ouvidos dos três demônios furiosos que responderam primeiro com um singelo tombar da cabeça – e então, ergueram-se como havia mandado seu mestre. Os gigantes emanavam uma energia submissa, ainda que não fossem capaz de dizer uma única palavra, dá para sentir. Em seu âmago, ele sabia que os havia domado.

　　Seu olhar brando, ainda que de baixo para cima, transbordava a superioridade que somente um verdadeiro deus possuía. Correu a atenção na direção de Hannya, que permanecia de pé ao seu lado emanando todo o calor de sua presença intensa e viu-o dar alguns passos se afastando lentamente, como se esperasse ser seguido.

　　— Vamos indo, senhor. O Jigoku é maior do que imagina.

V




　　Uma presença serpenteou vinda de trás, ligeiramente mais forte que os três à sua frente e o mascarado. Por cima de seu ombro direito, viu uma mão avançar e pousar sobre seu peito enquanto o rosto tocava seu ombro esquerdo, ali repousando. Olhou-a de soslaio, se deparando com os grandes olhos esmeraldinos num rosto de pele pálida e fios verdes escuros com algumas mechas sutilmente jogadas a frente do rosto.

　　Não se importou com a presença dela ali, mas os olhares pareciam mergulhados um no outro. Viu-a se afastar e se colocar rapidamente diante de si, uma criatura de estatura baixa com as bochechas costuradas como se tivessem cortado sua boca. O olhar dela parecia espantado e chamava sua atenção a beleza dela mesmo se tratando de um demônio.

　　— Seu rosto... — a voz dela era plácida como a sua, mas as palavras pareciam lhe escapar a mente como se estivesse desconfortável. — ...sinto que o conheço de algum lugar.

　　— É claro que o conhece. — Hannya interveio antes que pudesse dizer qualquer coisa. — Acredito que não esteja o identificando por conta desta aparência.

　　Warui voltou novamente sua atenção para as grandes criaturas atrás da garota, ainda que a presença dela lhe despertasse curiosidade.

　　— Podem se sentar.

　　O Sexto ordenou; e assim o trio fez. O movimento deles não passou despercebido pelo demônio de olhos de esmeralda, que olhou por cima do ombro e naquele momento pareceu ter compreendido quem era ele. A outra tinha os olhos levemente arregalados e aproximou-se lentamente de si. A Tempestade deixou a energia natural se esvair e devolveu a seu corpo a aparência humana.

　　— Este é...

　　— Arashi Warui. — a menina disse, com a voz fraca como se tivesse um nó na garganta.

VI




　　A atitude num primeiro momento ousada da criatura mirrada a sua frente não refletiu em nada como a outra se mostrava naquele momento. Viu-a desviar o olhar e esconder-se jogando uma mecha maior de seu cabelo a frente do rosto. Pode notar as pálidas maçãs ganharem um tom enrubescido também, e bastou apenas ela me reconhecer.

　　— E-Eu não sabia, me perdoe.

　　— Perdoar pelo que? — questionava, sem de fato direcionar a pergunta à esmeraldina.

　　— Se me permite, senhor. — Hannya atraiu sua atenção naquele momento. — Miroku-san tem certos problemas em lidar com humanos...

　　— Eu tenho meus motivos! — viu a timidez ser abanada para longe num estalo.

　　O mascarado, no entanto, deu pouca importância.

　　— Ela certamente pensou que se tratasse de um demônio que jamais tivesse visto pelo Jigoku.

　　— E o fato de eu ser um humano a incomoda por quê? — mais uma vez, disse sem que deixasse claro para quem era a indagação.

　　— Ela se parece bastante com um humano, mas há traços em sua aparência que os amedronta. — a placidez na voz de Hannya assemelhava-se mesmo à sua.

　　Warui voltou sua atenção a menina, que tinha o rosto corado e os grandes olhos como pedras de esmeralda fitando diretamente nos seus. Os longos fios de cabelo ainda escondiam parcialmente aquele rosto. Ele levou a ponta dos dedos da mão direita calmamente para jogá-los atrás de sua orelha; a criatura se encolher, porém ainda permaneceu ali. Ela me lembra um pouco a Haru.

　　— Os humanos não são melhores que os demônios, Miroku. — o nome dela não havia se esvaído de sua mente. — Não deixe que as opiniões deles a reprimam.

　　— Eles tem medo de mim, devem me achar horrível. — o olhar dela se voltou para os próprios pés.

　　— Você está bem longe de ser horrível. — retrucou, notando que suas palavras puxaram o rosto dela para cima como um imã. — Seus olhos tem uma beleza única, assim como cada traço em você.

　　— O senhor m-me acha bonita? — a menina balbuciava, quase incrédula.

　　— Não teria como não achar.

　　O aperto que recebeu no tronco fora como um urso tentando quebrá-lo no meio. Os braços dela o envolviam e o rosto afundava em seu peito – e ao Sexto, restou apenas retribuir. Sutilmente, tentou empurrá-la para recobrar sua liberdade, mas Miroku o apertava com força, ainda que sem machucar. O que eu faço agora?

　　— Parece que Miroku-san gostou de você, senhor.

　　— Parece?! — Warui retrucou, envolto por um abraço e mergulhado no desconforto.