I




A respiração se alinhava às correntes que sopravam no Reino Sombrio como se estivesse mais perto da unificação com a natureza caótica do lugar. Suas mãos pousavam sobre os joelhos enquanto suas pernas se cruzavam uma sobre a outra; Warui não movia um único músculo, ainda que pudesse ouvir os cantos infernais entoados por todo canto e se sentisse levemente incomodado. O lugar é repleto de criaturas e mesmo respirar aqui é uma tarefa difícil, pontuava mentalmente, já estando há alguns dias lá desde que tomara a decisão de aprimorar-se com os demônios.

　　Hannya o acompanhava de perto e sua presença era quente, emanando um calor que fazia-o sentir estar diante de uma grande fogueira. Não sentia Miroku tão distante, mas esta ainda parecia um pouco tímida, de fato lembrando bastante como Haru se comporta. Duas presenças se revelaram para os olhos da mente, duas chamas mais intensas que quaisquer outras que havia sentido naquele reino até então pareciam caminhar sem pressa – já estavam perto o bastante.

　　Abriu os olhos calmamente, estando diante apenas do mascarado, que havia se levantado e caído sobre um dos joelhos. Via o grande demônio baixar sua cabeça, e seu semblante permanecia com a costumeira placidez beirando a inexpressividade. Se pôs de pé e logo girou sobre os calcanhares antes de fitar nos afiados olhos vermelho sangue da mulher de cabelos azeviche e pele branca como a neve. Um quimono alvo amarrado na cintura por uma grande faixa carmesim adornava a criatura cuja presença era como o sopro de brisa numa madrugada de inverno na Névoa. Ao lado dela, uma caveira adornada com uma grande coroa dourada, um colar de mesmo material pendendo em seu pescoço com um rubi ao centro do que parecia um olho e sob vestes que pareciam partes da mais pura essência das trevas que bruxuleavam como chamas em um grande candelabro.

　　— Já imaginava que fossem vocês. — disse, sem mesuras. — É bom vê-los outra vez, mestres

II




　　— Mas é claro que os conhece. — constatou a máscara de sentimentos, como se pensasse alto. — Não à toa domina a arte sábia.

　　— Com quem mais ele poderia ter aprendido? — a voz doce da mulher de longos cabelos negros entoava com um ar quase imperativo, embora não fosse de fato ríspida; era um tanto melódica a forma dela falar. — Faz bastante tempo que não o vejo, meu querido Warui.

　　Os dedos finos da dama tocavam seu rosto com a suavidade de um sopro gélido numa tarde quente de verão para além da Névoa. Ele quase conseguia ver o reflexo dos próprios olhos nos da mulher gelada: eram intensos e serenos, exatamente como os seus. Não havia movido um músculo sequer, ainda se concentrava em absorver a energia do ambiente ao seu redor quando notou que a energia havia se tornado mais intensa com a presença dos senhores do reino.

　　São criaturas bastante diferentes de todas as outras daqui, enquanto Shirayuki era fria como uma nevasca, estar na presença de Dokuro era como ser tomado pela angustiante sensação da morte iminente. É até difícil respirar perto dele. A escuridão que eram os olhos do Rei causavam um desconforto mesmo nele que havia defrontado uma besta colossal na Nuvem. Quiçá, eram estes dois o grande motivo de seu velho conselheiro relutar tanto em compartilhar o conhecimento sobre aquelas criaturas e desejar morrer com ele.

III




　　— Você ainda não dominou completamente a arte, não é? — as palavras eram do Rei.

　　A voz de Dokuro era forte e grave, e algo nela o fazia sentir um aperto no peito e a garganta dar um nó. Não deixava transparecer qualquer coisa que estivesse sentindo naquele momento, porém; o Sexto permanecia impassível aos olhos dos Senhores do Reino Sombrio. Toda a energia caótica que emanava do lugar e que ele havia absorvido era usada para redesenhá-lo de forma drástica.

　　Cada fio de cabelo seu tingiu-se em tons alvos como a neve e sua pele banhou-se em uma cor pálida como se a vida tivesse esvaído de seu corpo. Os olhos borgonha tomaram o tom vermelho sangue e o par de chifres de mesma cor se estendeu pouco acima da testa: a resposta silenciosa para um de seus mestres. Ao longe, notou o brilho esmeraldino dos orbes de Miroku se moverem em sua direção e a chama da presença dela se aproximar timidamente.

　　—  Admito que sentirei falta desta aparência quando dominar completamente esta técnica. — o tom de Shirayuki era quase maternal naquele momento.

　　— É apenas questão de tempo. — ele respondeu, já mais calmo.

　　— Tenho certeza que sim. — a outra retrucou, esboçando um singelo sorriso nos lábios carmesim.

　　O Senhor do Jigoku, porém, permanecia em seu silêncio soturno.

IV




　　A imensidão negra dos orbes da caveira era aterradora, uma energia intensa que quase amedrontava mesmo um deus. Shirayuki, em contraste, era gentil embora fosse igualmente poderosa e estar diante dela o fazia lembrar-se dos momentos com sua mãe. Sequer poderia saber o que se passava na mente do senhor daquele reino; a sensação era de que estava sendo constantemente analisado, no entanto.

　　— Me parece que se sentindo mais confortável com a transformação. — a voz do Rei o alcançava como o ribombo de um trovão. — A perfeição não parece tão distante assim, Mizukage-sama.

　　— Obrigado, mestre. — respondeu sem se alongar, ainda não sentia tanta abertura com Dokuro para ir além do necessário.

　　— O reino dos humanos está tomado por um caos que não víamos a tempos. — continuava a grande caveira. — Todo poder que conseguir reunir será importante para as guerras que virão.

　　— Sequer consigo me lembrar da última vez que estivemos lá. — falava a Rainha, num timbre quase tomado pela nostalgia. — Mas, não é como se fizesse alguma questão disso.

　　Viu na boca da outra desdobrar-se um sorriso sádico quando as últimas palavras lhe escaparam os lábios. Os demônios realmente não são fáceis de lidar, pouco a pouco percebia como aquelas criaturas se colocavam acima dos homens, ainda que de maneira sutil. Às suas costas, pode sentir de súbito a presença de Miroku ressurgir o envolvendo num abraço, tirando-lhe o foco do Rei e da Rainha. Isto é novidade, olhou por cima do ombro para a menina, que o encarava com aquelas duas grandes pedras de esmeralda.

V




　　Um fio após o outro, seu cabelo retomou a cor de azeviche, o tom de sua pele ganhou vida outra vez e o vermelho sangue se despiu de suas írises. Nas pálidas bochechas da menina que o abraçava, pode ver o singelo rubor tingir, mas desta vez ela não recuou. A cabeça dela repousou sobre seu ombro, mostrando-se bastante à vontade a sua volta, diferente de como fora não muito longe no passado.

　　— Warui-san pode contar comigo se desejar. — a voz de Miroku não continha nenhum resquício da timidez de antes; parecia outra mulher.

　　— Me sentiria honrado em lutar ao lado da Tempestade Sombria, se ele assim desejar. — disse o mascarado. Pode sentir o outro ao seu lado sem sequer olhar de soslaio: a presença dele era como um verão ambulante. — Os Dokis também o respeitam bastante.

　　— Ora, parece que já conquistou bom aliados no Reino Sombrio. — emendava a Rainha, tecendo em seus lábios um sorriso mais sincero. — Você realmente tem algo a mais, não é mesmo?

　　O silêncio foi a primeira resposta do Sexto. Cada palavra de Hannya e Miroku pareceram respostas ao que Dokuro havia acabado de dizer, nenhuma delas foi direcionada a mim. Ele sentia que o Rei a todo instante indagava-se e julgava se era digno de suas forças e quiçá estivesse certo em fazê-lo. Humanos de fato são criaturas imprevisíveis e corrompidas em sua esmagadora maioria.

　　A Rainha ainda sorria para si.

　　— Acho que posso visitar o reino dos homens depois de tanto tempo, afinal.

VI




　　Era simplesmente impossível ler o semblante de uma criatura cujo corpo era um breu intenso e profundo e o rosto uma caveira coroada, mas ele quase podia dizer que as palavras da dama de gelo pegaram o senhor daquele reino de surpresa. Deuses e reis tem bastante em comum, o desconforto da presença do grande demônio havia se desgarrado de si e enfim sentiu-se como se caminhasse entre os seus. Eu sou a Sexta Sombra da Água.

　　— Me sinto lisonjeado, mestra. — respondeu à Rainha, rompendo o silêncio que pouco durou.

　　— Você sabe meu nome, Warui-san. Não precisa de tanta formalidade. — a outra retrucou.

　　Ela não faz ideia de que nomes me escapam a mente, ele guardou consigo o pensamento e apenas anuiu em resposta. O Rei não se movera por baixo do grande manto púrpura até aquele momento em que estendera a mão esquelética na direção da Sombra. Seu olhar mergulhou na imensidão escura das frestas do crânio antes de fazer o mesmo em um cumprimento com o demônio.

　　— Um deus entre os homens é poderoso o suficiente para dominar nossa arte sábia, — Dokuro soltou sua mão logo que sua voz veio da treva de sua existência. — mas precisa de muito mais que isso para se mostrar digno de ter reis como nós lutando ao seu lado.

　　— Miroku-san raramente se aproxima demais de humanos e Hannya nunca se curvou para um também. E ainda assim, os dois parecem respeitá-lo. — Shirayuki complementou, e pode vê-la correr os olhos na direção da garota que o abraçava. — Talvez seja até mais que apenas respeito. — a outra sorriu outra vez, um tanto maliciosa agora.

　　Sequer ouviu a voz da menina de olhos de esmeralda; a resposta era o silêncio.

　　— Arashi Warui, — sentira como se seu nome fosse dito por outro deus. — a guerra dos homens não nos diz respeito, mas terá a mim também como um aliado.

　　O ar pesou uma vez mais e a sensação angustiante o tomou mais uma vez, como se Dokuro o fizesse sempre que bem entendesse. Hannya caiu sobre um dos joelhos e Miroku se afastou, provavelmente também sentido o que o abrasava. Deuses não se curvam, Warui se manteve inabalável, exalando uma falsa indiferença no brilho borgonha.

　　— Não me decepcione.