Era uma noite fria como as outras. Haru bebericava sua bebida quente favorita: um chá de ervas com notas florais. Os torvelinhos de vapor aqueciam a face de tez lívida e aspecto porcelânico. Seus passos eram calmos, pisava sobre o chão frio e fosco da Névoa.

　　　Debaixo da tão característica neblina, Haru seguia para dentro do hospital da vila.

　　　Não era uma médica, não de profissão, mas em tempos tão difíceis no mundo ninja qualquer ajuda era bem-vinda — principalmente de uma cientista e iryō-nin.

　　　Apesar da caça constante à ciência e o retrocesso civil no País da Água, técnicas medicinais continuavam a serem requeridas dentro da vila.

　　　Haru se despiu do manto branco que a resguardava do sereno lá de fora. Pousou-o sobre o encosto da cadeira, dentro da baia em que fora instruída a ficar. No meio do ato, Shiro despertou a partir de um silvo dorminhoco. A pequena serpente albina revelou-se enrolada sobre os ombros franzinos de sua companheira.

　　　— Chegamos, Shiro — disse Haru, e a serpente silvou em resposta. — Já já a paciente deve chegar.

　　　A jovem Watanabi deixou o copo de chá sobre a mesa e, de dentro de sua bolsa, tirou uma carta já aberta. Os olhos cor de violeta teceram, pela segunda vez, uma análise sobre a correspondência: era um pedido de um mentor da Névoa. Ele gostaria que Haru cuidasse dos ferimentos de sua pupila, uma Genin chamada Yukiko.

　　　Esse mentor parece bem preocupado com sua pupila, pensou Haru. Bem diferente de Chi-sensei...

　　　Então escutou algumas batidas na porta.

　　　— Entre — disse Haru.

　　　Ela logo viu uma garota de curtos cabelos azuis entrar na sala. Como de costume, estudou-a de imediato. Observou a pele clara, os olhos como pedras de aquamarine, e a estatura média que deveria girar em torno de um metro e sessenta. E não pôde deixar de notar os ferimentos — eram lesões bem evidentes.

　　　— Yukiko, certo? — perguntou Haru. — Sou Haru e este aqui é Shiro. Não se preocupe que é uma serpente dócil.

　　　A Watanabi levantou-se e indicou a maca à esquerda para a garota sentar-se.

　　　Os ferimentos estão expostos. Mas é bom averiguar se há algo por dentro também.

　　　— Antes de tratar as feridas mais superficiais, irei fazer um diagnóstico mais aprofundado, tudo bem?

　　　Haru lembrou-se de uma técnica que havia estudado fazia alguns dias: a técnica de diagnóstico, Shindan Gijutsu. Era uma ótima oportunidade de colocá-la em prática. Prontamente, como mandava o pergaminho do jutsu, energizou a palma das mãos com chakra medicinal.

　　　Com cuidado, aproximou as mãos da paciente, próximo ao local das feridas. Tateou as lesões, contornou os machucados abertos. E, com a precisão devida aliada a seu controle minucioso da energia espiritual, começou a sentir as palpitações de Yukiko. Mas não eram as palpitações já reconhecíveis de seu coração; eram as palpitações de seu corpo, de sua vitalidade na mais pra essência.

　　　O diagnóstico prosseguiu por mais alguns minutos, até que, quando sentiu que estava concluído, Haru se afastou. E disse:

　　　— Bom, pelo visto está tudo bem com você. — Havia um grácil sorriso em seu rosto. — É uma garota de saúde muito boa, Yukiko.

Considerações:

　　　Haru notou o semblante de surpresa seguido de instigação que se aflorou no rosto de Yukiko. A Genin estava curiosa sobre o tratamento, e isso despertou em Haru um sentimento de nostalgia — lembrou-se de quando aprendeu as artes ninjas medicinais com uma Jōnin da Névoa, isso quando ainda era uma Genin.

　　　Mas não, não foi Chi que ensinou o Iryo Ninjutsu para a pequena Watanabi. Embora fosse ela, a Jōnin de cachos azul-prateados, que veio a sua mente.

　　　Manteve-se em silêncio por alguns segundos antes de responder. Até que seus lábios já se encontravam entreabertos. Porém, Yukiko tornou a falar. E Haru tornou a ficar em silêncio.

　　　Uniu as mãos sobre o ferimento da jovem Hyūga, e se colocou a pensar sobre o dia em que conheceu uma Hyūga, a garota ruiva de olhos perolados e coração audaz, lá na incursão do País das Ondas. E a imagem dos famigerados olhos brancos cruzou sua mente num lampejo. Questionou-se se Yukiko portava tal habilidade.

　　　Os finos lábios de veludo sorriram.

　　　— Não tem problema — finalmente respondeu Haru. — E sim, usei o chakra para mapear seu corpo a fim de reconhecer o melhor tratamento a se realizar.

　　　Suas mãos ferveram e o chakra esmeralda começou a irradiar.

　　　— Agora sim, irei curá-la — concluiu.

　　　Como quem queria participar da conversa, a esperta serpente albina rastejou-se sobre a mesa, aproximando-se das duas shinobis. Shiro ergueu parte do corpo e encarou, fixamente, a energia que fluía das mãos de Haru.

　　　A Watanabi notou o apreço da cobra, e seus olhos violeta fitaram a garota de cabelos marinhos mais uma vez.

　　　— Diga-me, Yukiko — falou Haru —, quais são as suas ambições com a vida ninja? Almeja algum cargo de graduação? Ou... alguma habilidade especial?

　　　Esperou para ver o que ela lhe responderia.

　　　Durante esse ínterim, concentrou-se na técnica medicinal. Haru sempre se maravilhou, desde a primeira vez em que viu, como o chakra era capaz de acelerar o processo de regeneração natural do corpo e, com isso, reconstruir os tecidos, mesmo os mais complexos.

　　　Sempre que estou na presença de Genins e Chūnins da Névoa, encontro-me tão pensativa... Fico lembrando dos momentos mais decisivos e marcantes que aconteceram comigo até chegar a Jōnin.

Considerações:

　　　Admirou-se, como sempre fazia, com o vapor das células superaquecidas devido ao processo acelerado de regeneração. Afastou um pouco o rosto, retirou as mãos de cima das feridas para visualizar bem a área recuperada.

　　　Sorriu. Estava tudo certo.

　　　Parou a emissão de chakra curativo, dissipando a energia esmeralda que irradiava de suas mãos. Enquanto isso, escutou o que a jovem Yukiko tinha a dizer. Semicerrou os olhos de violeta. Identificou, naquela resposta, sinais de filantropia.

　　　Uma geração altruísta, então. A Névoa carece disso.

　　　— É uma ambição bastante digna, apesar de, aparentemente, não gostar muito do termo — disse Haru, fitando a jovem. — Sabe, sei que não sou muito mais velha do que você, porém já tive um número considerável de experiências no mundo shinobi.  Digo a você que sacrifícios existem, perdas...

　　　Uma pausa hesitante. Suspirou. Recobrou-se. E voltou a falar:

　　　— Eu tinha uma mestra também, que se foi. Ela era a melhor usuária de fūinjutsu que já conheci, além de ser a costureira número um da Névoa. Portanto, se te cabe o conselho, aproveite ao máximo de todos os ensinamentos dos tutores que passarem pela sua trajetória, Yukiko.

　　　Haru sorriu outra vez — parece que já estava virando um ato comum para alguém que antes não esboçava reação alguma. Ela então enrubesceu com a última fala da Genin, que pegou-a de surpresa. Menos formalidade significava uma distância mais estreita em suas relações interpessoais, e essa distância sempre foi uma forma de segurança para a Watanabi.

　　　Todavia, as coisas estavam mudando.

　　　— Está bem, Yuki — respondeu Haru.

　　　Sentiu, então, o toque gélido das escamas albinas de Shiro. A cobra serpeou, aproximando-se ainda mais, e se colocou a subir pelo braço pálido de Haru. A kunoichi escutou o silvo de sua companheira e interpretou seu agrado com a relação que era estabelecida. E pensou: O silvo de Shiro sempre me acalma.

　　　Mas não foi só isso. Shiro estava lembrando-a do que deveria ser feito.

　　　Prontamente, Haru concentrou mais chakra no selo de losango em sua testa, que ficava parcialmente oculto pelos feixes negros de sua franja, e já começava a recorrente dor em seus tenketsus pelo controle constante da energia espiritual.

　　　Haru suspirou.

　　　— Bom, você já deve estar sabendo de algumas ameaças mundo afora. E que, recentemente, todas as nações foram convocadas para uma reunião no País do Relâmpago... Cuide bem da Névoa, Yuki.

Considerações: