Os olhos cor de violeta fitaram os pergaminhos desenrolados bem à frente, sobre a mesa. Um curto suspiro escapou pelos lábios rosados de Haru, enquanto ela deixou seus ombros cederem por um instante.

　　　Havia muito o que ser feito.

　　　Já era tarde, a noite acobertava a Névoa num breu fustigante. Ainda assim, a pequena Watanabi encontrava-se em sua floricultura de fachada — ou laboratório disfarçado. E, na verdade, esse era o seu horário preferido para trabalhar: quando os riscos de ser incomodada e ter suas pesquisas interrompidas era reduzido a quase zero.

　　　Um dos pergaminhos estirados ali continha as típicas gravuras de técnicas de fūin. Bastou um selo manual, tecido pelas mãos pálidas da kunoichi, para que dois frascos surgissem através de um estouro de fumo branco.

　　　 Dois frascos de veneno.

　　　Com o cuidado de mãos experientes, Haru manuseou o primeiro dos frascos: o que armazenada um líquido escuro, o veneno Nyx. Ela estendeu o braço em cima da mesa e despejou o veneno sobre ele. A substância de reflexo púrpuro proporcionou um contraste imediato com o tom lívido de seu antebraço.

　　　A morte pareceu tão próxima. A garota sentiu as palpitações da adrenalina que correu pelas suas veias. Mas, de modo efêmero, se foi...

　　　A imagem de uma serpente brotou de sua pele, como uma tatuagem que ganhava vida, e sorveu todo o veneno. Alimentada por Nyx, a criatura mergulhou de volta para a pele límpida de Haru.

　　　A filha da Névoa repetiu o processo com o segundo frasco: um incolor, mas com aroma de flores, Hipnos.

　　　E então suspirou. Pendeu para frente a cabeça, os feixes escuros como a noite escorreram pelo ombro feito um véu. Mas não se colocou a descansar, pois, de longe, sentiu a aproximação de um fantasma invadindo seu ímpeto sensorial.

　　　Não se moveu, porém. Deixou que o fantasma entrasse na floricultura e chegasse ali.

　　　Foi quando ela escutou a voz modificada pelo tempo, cujo timbre permanecia em sua memória. Lançou os olhos violeta por cima do ombro, e vislumbrou aquela moça ruiva: uma garota que lhe despertava diversas emoções, a começar por um nome.

　　　— Tanya — disse Haru. Sua voz saiu fraca como um sussurro.

　　　Contudo, antes que pudesse prolongar o diálogo, foi acometida pelos dizeres arrebatadores da garota: "Eu já deveria dizer senhora primeira dama?" O enrubescimento das bochechas de Haru foi imediato. Falar de Warui mexia com ela: quebrava sua máscara. Mas isso a fez lembrar, mais uma vez, daquele nome.

　　　— Seu comportamento me lembra uma velha amiga — continuou Haru, recobrando a postura. — A convivência com ela lhe passou esse humor destemido?

　　　E um sorriso brincou nos lábios rosados.

Considerações:

　　　Virou-se para Tanya e levantou-se da cadeira. Saboreou o silêncio que se fez por alguns segundos, fitando a ruiva.

　　　Enquanto escutava o que a garota tinha a dizer, estudou seus sinais: o timbre da voz, os gestos do corpo e, até mesmo, os movimentos mais sutis dos músculos da face polvilhada de sardas. Notou como ela estava receosa. E pensou: Ela esperava que eu agisse com atrito... Não havia previsto um comportamento assim de Tanya. De fato, a convivência com Chi a tornou também imprevisível.

　　　— A Névoa está um caos, Tanya — disse Haru, e havia pesar em sua voz. — Uma guerra política estourou aqui dentro, enquanto o mundo fora das fronteiras não vai nada bem. Perdemos pessoas importantes para a nossa nação, houve um regresso civil enorme, ameaças constantes contra a nossa Sombra... e você esperava que eu tratasse uma ex-colega de time com hostilidade?

　　　Haru arfou. Deu um passo à frente e o silvo de Shiro roubou sua atenção.

　　　A serpente, que estava rastejando-se entre as papeladas, arqueou sua cabeça enquanto apontava a língua bifurcada para a intrusa. Haru reconheceu, porém, que não havia ameaça ali. Shiro estava relembrando o cheiro de Tanya.

　　　A Watanabi curvou a ponta dos lábios num sorriso sutil.

　　　— Sou capaz de entender suas razões para desertar a Névoa — continuou Haru. — Assim como entendo que não está aqui por um mal motivo. A neblina fria a trouxe de volta.

　　　Ela deu mais um passo para perto de Tanya. Encurtou a distância para mirá-la no centro dos olhos, onde a verdade se abriga.

　　　Tanya quer trabalhar para a Névoa, pois aqui é o que restou para ela. É o seu lar, querendo ou não. Só um tolo prejudicaria o próprio lar... Além do mais, posso interpretar a veracidade de suas palavras. Sei que ela não está mentindo.

　　　Tanya só ainda não quer a oficialização de seu retorno... mas ela virá.

　　　— Eu não sou a pessoa mais adequada para firmar um acordo como esse. — Só preciso colocá-la mais próxima do título, e o destino se encarregará do resto. — Mas posso servir de ponte.

Considerações:

　　　Chi não quer ser encontrada... Haru apertou as próprias vestes por debaixo do manto branco. Recusava-se a aceitar o fim da Tecelã de Sangue. Muito embora esse fosse um pensamento irracional, ela se apegava a ele e não conseguia soltar.

　　　E essa sensação para ela era algo ainda muito estranho: agir com irracionalidade, permitir que emoções de fragilidade encontrassem sua mente.

　　　Como sempre, pensar em Chi e em Warui significava ultrapassar os limites de suas próprias barreiras de segurança, era desvincular-se de qualquer treinamento que tivera feito para ter um raciocínio sistemático, polido e certeiro.

　　　Piscou demoradamente, simbolizando o segundo que levou para se recobrar. Empertigou-se e reouve a plenitude de suas ações. Voltou a ponderar o diálogo trazido por Tanya, e as complicações que as ações de uma desertora de volta à pátria trariam como resultado.

　　　E uma fala de Warui cruzou sua mente: "Te devo uma, mais uma vez." Foi no Hospital da Névoa, um tempo atrás, quando a jovem Watanabi salvou Jiro, caçador e membro da equipe dez, de um veneno melindroso.

　　　—  Eu sei que ele dará um jeito — afirmou Haru. —  Irei contatá-lo. Se quiser, podemos fazer isso juntas.

　　　No ínterim de suas palavras, observou como Shiro rastejou-se pelas costas da mão de Tanya. A serpente estava à vontade. Talvez a ruiva tivesse fragrância de nostalgia para ela.

　　　Os olhos cor de lavanda fitaram o brilho nacarado das escamas albinas: como Shiro resplandecia quando estava alegre, seu corpo enchia-se de visco e sua língua entrava em frenesi.

　　　O silvo da serpente era alegre.

　　　—  Enquanto não encontramos o momento mais propício para abordar a Sombra, já tem algum lugar para ficar? — perguntou Haru. — Você pode passar uns dias aqui e se acobertar no meu disfarce. Desde que a ciência fora proibida pela Água, tive de criar esta floricultura como fachada, para esconder meu laboratório e assim continuar minhas pesquisas...

　　　Pausou. Seu olhar ficou distante. Então voltou.

　　　— A floricultura ainda carece de uma assistente.

　　　Talvez Tanya pudesse entrar na farsa de Haru, e ambas se aproveitarem de uma simbiose nesse momento tão caótico do mundo shinobi.

Considerações: