A NÉVOA UMEDECIA OS longos fios do cabelo de Haru, feixes escuros de iluminação levemente violeta, enredados numa trança que pendia por cima do quimono. Passou a mão para limpar a testa das primeira gotas de suor, balançando a franja e revelando o selo losangular que marcava seu chakra frontal. Ela sabia que estava prestes a concluir o treinamento de mais uma técnica.

　　　Bem ali, no campo afastado da vila, próximo a um rio que intensificava a neblina nas redondezas, que Haru invocou mais de dez serpentes de uma só vez.

　　　Erguera o braço para frente, concentrando energia espiritual por toda sua extensão, então abrira um portal espaço-temporal para que as cobras se projetassem para fora da manga de seu quimono. As víboras eram dotadas de escamas lívidas e de olhos rosados, mostravam as presas inoculadoras com veneno pronto para ser injetado. Após simulado o ataque a um tronco de árvore, sumiram.

　　　— Consegui, Shiro — disse Haru, empertigando-se novamente e acariciando sua companheira albina, que encimava seu ombro. — Posso dar o próximo passo como pactuária das cobras.

　　　Shiro silvou alegremente.




　　　Ao pisar no Território do Dragão, a célebre Caverna Ryūchi, o pescoço de Haru se estremeceu, como se houvesse alguém a observando. Sempre há alguém, pensou ela.

　　　Não havia sequer uma figura visível nesse ambiente rígido de pedras curtidas pelo tempo, mas o covil não se mantinha silencioso. Dos inúmeros túneis escuros que existentes nas paredes abobadadas, o som sussurrado de arraste e assovio flauteava a cada segundo que se passava — às vezes imprimindo o barulho de um chocalho.

　　　Haru cogitou recorrer ao sexto sentido de seu chakra, a técnica de sensoriamento, mas desistiu em seguida: sabe-se lá quantas milhares de chamas espirituais teria que computar caso o fizesse. Era melhor preservar o foco da mente.

　　　Como a jovem da Névoa já estava conhecendo o costume das cobras, o jeito ardiloso e a prática subjugante, caminhou até o centro da sala em que estava e disse:

　　　— Sendo eu, Watanabi Haru, pactuária das cobras, convoco uma das cobras gigantes, Kyodaija, para um acordo.

　　　Os sussurros cessaram, dando fim à melodia de fundo. E uma enorme cobra de escamas amarronzadas emergiu das sombras, saindo direto de um dos túneis que compunha aquela paisagem hostil.

Considerações:

　　　Haru estudou a serpente que se aproximava. Kyodaija era gigante, e a mente atinada da garota rapidamente calculou a extensão do corpo amplo da cobra: alcançava mais de quinze metros de comprimento. A grande víbora se deteve a poucos metros de distância da filha da Névoa, encarando-a lá de cima, com a enorme cabeça erguida e os olhos âmbar-riscados a fitando.

　　　Era os âmbar contra os violeta.

　　　No interim da tensão que subia com as duas, Haru e Kyodaija, que se entreolhavam, Shiro silvou. O silêncio foi cortado pelo zunido fraco, porém agudo, da pequena serpente albina. Então a jovem Watanabi respirou fundo.

　　　— Kyodaija-san, coloco-me à prova para firmar o acordo — disse Haru —, para além do pacto de sangue já estabelecido com Hakuja-sama.

　　　Silêncio.

　　　Embora pareça difícil estabelecer acordo com um ser incapaz de falar, não acho que será difícil fazê-lo com Kyodaija, ponderou consigo mesma, mantendo-se focada em conservar a calma. Ela sabia o quanto as cobras poderiam ser arredias — traiçoeiras, muitas vezes —, a maneira nada gentil de como a espécie era conhecida quando recusava uma proposta: veneno ou estrangulamento.

　　　De novo, Haru inspirou fundo e exalou devagar.

　　　— Aceite-me como mestra, e eu a invocarei em batalha. — Pegou fôlego e continuou: — Nos tempos calmos, estarei à disposição dos propósitos de Ryūchi. Meu pacto é mutual.

　　　Mais um tempo de silêncio.

　　　Kyodaija finalmente expressou o primeiro sinal: meneou a cabeça, inclinando-a para um lado e para o outro num movimento sinuoso que a levou a abaixar-se. Silvou de modo rasteiro. Encostou o papo no chão, com a língua bifurcada quase a tocar Haru nos movimentos de vai e vem.

　　　A Viperina Ametista fisgou o significado do gesto. Um ser tão imponente abaixar a cabeça é sinal de subjugação. A serventia vinha junto a esse ato.

　　　Haru imitou o gesto: inclinou o corpo e reverenciou a cobra gigantesca.

　　　Por fim, Kyodaija saiu rastejando dali, mergulhando de volta nas sombras do túnel de onde viera.

Considerações:

　　　Com a cobra gigante saindo de cena, a atmosfera de tensão deu uma trégua. Haru aproveitou para relaxar um pouco os ombros, mas sabendo que logo teria que contraí-los novamente. Seu objetivo ali era claro: firmar acordos com as cobras que julgava mais fortes e estratégicas em campo. Afinal, o caos no mundo só piorava, até mesmo o grande astro prateado fora corrompido.

　　　Shiro, que permanecia como um colar na garota, silvou, levantando um pouco a cabeça e apontando a língua bifurcada para a kunoichi.

　　　— Sim, Shiro, vamos ao próximo — respondeu Haru, consentindo o ato da companheira de escamas pálidas.

　　　Haru se preparou para projetar a voz mais uma vez, enchendo os pulmões, sentindo o gosto acre do ar viciado da caverna. Encarou os túneis, grandes manchas escuras marcadas nas paredes, imaginando de onde sairia a próxima que convocaria a seguir. E pensou: Ela tem a fama de um colosso.

　　　Enfim, prosseguiu:

　　　— Dando continuidade ao meu objetivo aqui, convoco Aoda, a colosso azul-purpúrea.

　　　Do mesmo jeito que antes, houve silêncio. Um silêncio que inflava a tensão, parecendo comprimir o ar e torná-lo rarefeito. Haru tinha noção, porém, de que a sensação era uma consequência do nervosismo. Bastava atender a um regime controlado de sua respiração para que os efeitos amenizassem.

　　　Então ela apareceu.

　　　Mas não das sombras de um dos túneis. Aoda emergiu das águas azuladas de um lago que havia bem ali na caverna.

Considerações:

　　　Haru estreitou o olhar, observando o corpo lânguido que emergia das águas: de pele escamosa num tom místico entre o anil e o púrpura, era uma extensão que parecia não ter fim. Seu reconhecimento como cobra colossal não é por acaso, reparou.

　　　Shiro não demonstrava intimidação perante o ser titânico. A pequenina serpente albina sibilava, farejando o odor de Aoda com sua língua bifurcada. Haru reconhecia a normalidade de sua respiração.

　　　Ainda com parte do corpo mergulhado no lago, a cobra colossal pendeu a cabeça enorme na direção da garota — que não passava de um cisco na sua frente.

　　　— Esses olhos violeta — comentou Aoda, a voz era incisiva apesar do timbre cortês. — Já ouvi falar de você, Watanabi Haru, aquela que se submeteu ao ritual de Beladona. Agora prossiga com a sua proposta.

　　　Não sinto qualquer ameaça, mesmo que velada, vindo dele, disse Haru para si mesma. Ao estudar Aoda, ela identificava uma personalidade diferente das demais habitantes do covil. Não havia a nuance ardil oculta abaixo da língua, o quê traiçoeiro escondido feito uma presa retrátil preparada para projetar-se e injetar seu veneno.

　　　Prontamente, sem deixar o timing certo escapar, Haru respondeu:

　　　— Eu lhe ofereço o que ofereci a Kyodaija: disposição aos propósitos de Ryūchi. — Pausou, analisando as faíscas de expressão do colosso. — Eu a tratarei com o mesmo respeito com que sei que me tratará, Aoda-sama.

　　　A Watanabi tentava atingir o ponto certo da comoção da azul-purpúrea.

　　　— Já ouvi falar de você — repetiu Aoda. — Me prepare um chá, um doce e especial de ervas colhidas pela sua floricultura.

　　　— Farei com muito cuidado — respondeu Haru. — Um chá de artemísia, a rainha-das-ervas, para afagar todas as suas dores.

　　　— Faça isso, Haru-sama. Faça isso...

　　　Desviando o rosto, dando meia-volta, a cobra colossal retornou para o lago e nele se afundou. Enquanto que Haru deu-se por satisfeita, pois sabia o que o "sama" atrelado a seu nome queria dizer: a mesma coisa que o gesto servil de Kyodaija, a subserviência.

　　　Aoda aceitou o acordo.

Considerações:

　　　 O grácil sorriso de quem recrutou mais um dos seres míticos, as serpentes da caverna lendária, não durou muito. Os lábios de Haru voltaram a admitir a tensão da seriedade fatal que era imposta pelo Território do Dragão. Restava, agora, reaver o fôlego a fim de preparar-se para a próxima — e última — cobra colossal.

　　　 Quando Haru fez menção de falar, Shiro a interrompeu com um silvo frenético. Ergueu a cabeça na altura do rosto da Watanabi, e a fitou com seus pequeninos olhos vermelhos. Através do gesto, a kunoichi enxergou a preocupação de sua companheira.

　　　 Shiro sabe que a próxima é a mais difícil, pensou Haru. E disse:

　　　 — Acalme-se, Shiro. Estou sendo cuidadosa.

　　　 A verdade era que Haru sempre era cuidadosa. De certo, para a pequena albina, isso talvez não bastasse frente ao que enfrentaria a seguir. E o zelo que tinha por Haru falava mais alto. Shiro insistia, silvando, encarando-a com o olhar incisivo e de semblante preocupado.

　　　 A Viperina voltou a sorrir, um sorriso doce. Os dedos pálidos pousaram delicadamente sobre a cabeça do animal, afagando-lhe as escamas.

　　　 — Façamos o seguinte — disse ela —, ao menor sinal de ataque, não hesitarei em fugir. — Escolheu a melhor palavra para que não devesse explicações depois. E lembrou-se de Warui, das palavras do rapaz como a Sombra da Água. — Nós voltaremos para casa. É uma promessa.

　　　 Poucos segundos se passaram. Shiro diminuiu o frenesi e recuou à posição de colar, ao mesmo passo que Haru reuniu fôlego e projetou a voz, dizendo:

　　　 — E continuando a exercer meu direito como pactuária das cobras, eu convoco A Serpente Colossal Mais Forte, Manda!

Considerações:

　　　 A Viperina Ametista aguardava a Colossal Mais Forte, em silêncio absoluto: cuidava para que o próprio corpo não emitisse som algum, para que a percepção de suas emoções, quando investigadas por Manda, não fossem de fácil leitura. Sabia que a cobra, ainda assim, sendo poderosa como era conhecida, conseguiria ver através do seu semblante plácido de boneca de porcelana.

　　　 Silêncio. Um silêncio sepulcral. Se antes era possível escutar algum rastejar, algum sibilar, agora havia apenas a ausência quase absoluta de som — não fosse a brisa que uivava pelos túneis.

　　　 Não terei medo, disse Haru para si mesma. O medo mata a mente. Ela implantava as palavras na própria cabeça para atingir o subconsciente, condicionando-se a seguir o mantra tranquilizante. Embora o fizesse, tinha noção de que era quase certo o medo que viria, como uma força natural incontestável, ao confronta-la.

　　　 E então o solo começou a estremecer.

　　　 Tão de súbito quanto o início dos tremores, poucos metros à frente da filha da Névoa, o chão se partiu. A superfície de solo rígido quebrou-se feito vidro, erguendo poeira e lançando pedaços de pedra pelos ares.

　　　 Instintivamente, num ato de reflexo, Haru tapou o rosto com os braços e retraiu brevemente o corpo. Sentiu que Shiro apertou-se sobre seu ombro, retraindo-se na mesma medida.

　　　 Uma voz pesada estrondeou no salão do covil, antes mesmo da garota e sua serpente se recuperarem do choque repentino.

　　　 — Watanabi Haru, você me convocou! É bom que faça valer meu tempo.

Considerações:

　　　 Só depois que a poeira abaixou foi que Haru desceu os braços. Agiu com minúcia. Contemplou, então, a titã que se erguera bem a sua frente.

　　　 Manda é ainda maior do que eu havia imaginado, pensou ela. Pôs-se a estudar a criatura colossal. Perscrutou as escamas de cor roxa, os anéis escuros na coloração, o formato angular da cabeça, os quatro chifres que se projetavam no alto do crânio e os olhos. Esses olhos... duas pedras fulgurantes de jade, eram dotados de um olhar tão incisivo que Haru sentiu que a própria alma estava à mostra.

　　　 Diante de tal magnitude, a Watanabi baixou a cabeça num ato de reverência. Exercendo o autocontrole que treinara, admitiu uma postura empertigada e um ar de serenidade conquistada. Logo ergueu a cabeça.

　　　 — Manda-sama — disse Haru —, eu a convoquei para...

　　　 — Não vai me ganhar como ganhou as demais! — cortou Manda. — As coisas são muito simples para mim: seja digna e poderá me invocar.

　　　 Haru umedeceu os lábios com a língua. E perguntou:

　　　 — Como posso provar essa dignidade?

　　　 — É muito simples, Viperina Ametista. Mostre-se que é capaz de invocar uma legião de serpentes de uma vez só. — Manda soltou uma gargalhada que sacudiu as abóbadas do salão. — Quero ver esse rosto de fada cuspindo dez mil serpentes.

　　　 Dez mil serpentes, as palavras da cobra colossal ecoaram na mente da kunoichi. É a técnica de formação das cobras que ainda não treinei. Ela engoliu em seco, pensando que teria de concluir o treinamento ali mesmo, na frente de Manda.

　　　 Haru fechou os olhos e se concentrou na energia espiritual que emanava dentro de si. Havia há pouco dominado a técnica das serpentes escondidas na manga. Sabia, portanto, que a que deveria treinar agora seguia o mesmo princípio, era uma variação. Dada as proporções, a diferença de uma técnica para a outra, essa exige um fluxo maior de chakra e a abertura contínua da fenda no tempo-espaço, pensou.

　　　 Abriu os olhos, revelando os orbes de cor violeta. Ficou de joelhos, já preparando o chakra dentro de sua boca, abrindo a fenda necessária. Pousou a palma das mãos no chão como apoio.

　　　 E então surtiu o jutsu.

　　　Haru se tornou o manancial de um oceano de serpentes albinas. Eram tantas que se amontoavam umas sobre as outras e escorriam à frente feito um rio raivoso.

　　　A risada de Manda trovejou novamente.

　　　 — Isso mesmo — disse a cobra colossal. — Agora sim, aceito que seja digna de me invocar. Mas saiba que não terá de mim o mesmo tratamento que terá de Aoda.

　　　 O rio de serpentes desapareceu. Haru, ofegante, levantou-se, respirou fundo  e disse:

　　　 — Que assim seja, Manda-sama.

Considerações: