OS PASSOS DO OFICIAL eram certeiros: ele sabia precisamente aonde ir e o que fazer. Seu olhar era impassível, nem mesmo as rugas que denunciavam parcialmente sua idade avançada eram capazes de revelar o que estava por trás do semblante, da carranca inexpressiva. Envergava um fardamento preto com detalhes azuis-marinhos, de costura impecável e ornamentado por franjas curtas nas delimitações de cada ombreira.

　　　Por onde ele passava, os outros homens no caminho abriam espaço e prestavam continência. Todos trajados do mesmo jeito, à exceção das ombreiras, e nenhum com tal postura. Ele atravessou o corredor frio de aspecto metálico-rochoso: parecia uma caverna, onde luminárias de parede mal clareavam o ambiente com uma luz pálida. Então deteve-se frente à câmara fechada, cuja parede dianteira era inteira formada por janelões de vidro, do piso ao teto, armados com aço negro.

　　　Dois homens empertigados como cães de guarda protegiam a porta de entrada da câmara. O oficial aproximou-se de um deles e disse:

　　　— Está tudo pronto, soldado?

　　　— Sim, senhor — respondeu o guarda, prontamente.
　　　
　　　O de maior patente deu um passo para o lado, inclinando-se na direção dos janelões. Através da esquadria ligeiramente escura, examinou o interior da sala. E lá estava ela, sentada a uma ampla mesa de ferro, com os braços atirados para trás da cadeira e de cabeça baixa.

　　　— Ainda está desacordada? — perguntou o oficial, voltando a olhar para o soldado.

　　　— Não, senhor — disse o mesmo guarda.

　　　— Mas ainda está meio baqueada — o outro se apressou.

Considerações:

　　　O oficial rumorejou.

　　　Apesar do peso do tempo sobre suas pálpebras, o olhar era afiado e sua face curtida detinha feições aquilinas: era experiente, e sua experiência dizia-lhe para manter-se desconfiado, talvez com um ou dois pés atrás.

　　　Atendendo a seus instintos — que deixaram-no vivo até hoje, vale salientar —, inclinou-se de novo para observá-la através das esquadrias de vidro cinzento. As pálpebras pesadas se estreitaram: esquadrinhavam-na com largueza.

　　　Quase não se notava movimento por parte da garota. E a despeito da cabeça baixa, da face oculta pela franja caída à frente, os feixes de cabelo que escorriam da cabeça dela eram inconfundíveis: a cor ébano-violeta, a iluminação lilás-opalescente. Somando isso às frações de pele pálida que apareciam nas frestas do cabelo, da delicada linha maxilar que se via desenhando o queixo suave…

　　　Era ela! Não havia engano.

　　　Então ele perguntou a si mesmo se a menina era digna do desconforto que estava fazendo-o sentir, da desconfiança ameaçadora que o pressionava como se estivesse encarando uma serpente de presas à mostra e preparada para dar o bote; se uma garota tão jovem poderia evocar o temor que ele sentiu na primeira vez que se deparou com a câmara de investigação — há muito, muito tempo, na época em que não passava de um mero aspirante do Exército da Água.

Considerações:

　　　Um dos guardas, o da direita, pigarreou antes de falar:

　　　— O senhor não vai entrar, general? — Uma mão já pousava na larga maçaneta de aço negro, enquanto a outra buscava pelo molho de compridas chaves prateadas preso ao cinto.

　　　Sem tirar a atenção dos janelões, sequer movendo o rosto para responder, o velho oficial anuiu lentamente com a cabeça. As pálpebras nem ao menos tremeram, até mesmo as rugas estavam paralisadas pela tamanha concentração que ele dedicava àquela garota.

　　　O ruído metálico da chave girando a fechadura. O barulho esganiçado da pesada porta se abrindo, sendo arrastada pelas duas mãos do guarda que teve de parar por um momento para limpar o suor do rosto. E então estava aberta, a passagem para o interior daquela sala ainda mais fria que o lúgubre corredor que a antecedia.

　　　O oficial mirou o rosto maduro para a entrada da câmara.

　　　Ele se aprumou, vestindo-se de toda a autoridade que seu cargo, sua patente, lhe concedia: o traquejo de um veterano de guerra, do oficial mais destemido do Exército da Água, do mais longevo que era digno daquelas ombreiras azuis-marinhas e que ainda vive; um símbolo militar no país de arquipélagos.

　　　Estava prestes a entrar. Envolvido na atmosfera de tensão obstinada que sua mente criava e que seus músculos sentiam: o que a experiência, sua velha amiga, lhe bombardeava.

Considerações:

　　　— General, quer que a equipe de controle tático seja acionada? — perguntou o guarda à esquerda. — Todos estão a postos para não deixá-la…

　　　— Silêncio! — impôs o oficial, sem perder a postura. — Silêncio. Deixe-os no lugar designado, a posição de cada agente neste Forte foi planejada.

　　　O guarda não protestou. Calou-se, abaixou a cabeça e deu um passo para trás. O outro, embora a bronca não lhe fosse dirigida, vestiu a carapuça e copiou os gestos de seu comparsa.

　　　Já com os dois pés sobre a soleira, o velho general, por cima do ombro, lançou seu olhar incisivo para os dois que eram como cães de guarda.

　　　— Tranquem a porta, lacrem a câmara — ordenou ele — e voltem a seus lugares. — Tornou a olhar para frente. — E em hipótese alguma se esqueçam: permaneçam com as lanças de guerrilha em riste.

　　　De peito estufado e queixo erguido, ele rumou à mesa de ferro.

　　　O velho general entendia que parte dele estava relutante, tendo de forçosamente afastar o medo a todo momento. E como era uma sensação cômica, ele pensou. Havia engendrado tanto aquele momento…

　　　Foi o líder da operação que arquitetou e da que, posteriormente, executou o plano para que ele estivesse ali agora: naquela câmara cavernosa, diante daquela mesa de acabamento bruto e encarando aquela garota de madeixas ébano-violeta.

Considerações:

　　　Ocorreu-lhe, então, ao examinar os próprios sentimentos, que ele vestira toda a pompa de sua autoridade não porque, simples e exclusivamente, essa era uma exigência de seu cargo, mas sim porque a presença da Névoa o intimidava de tal maneira que apenas blindado numa armadura seria possível enfrentar alguém dessa gente — em tom escarnecedor, como ele costumava dizer.
　　
　　　Hoje começa o declínio daqueles que se ocultam no nevoeiro, o velho general afirmou para si mesmo. Finalmente! A ansiedade que sentia era capaz de subjugar o medo que estava no encalço da emoção; agarrou-se a ela.

　　　Achegou-se à mesa. Antes de se sentar, a mão pousou sobre o tampo mineral. O metal era gelado, mas ele não sentiu o gelo: nisso percebeu o suor igualmente frio do nervosismo a banhar as palmas. Teve a reação imediata de se controlar, reaver a postura. Com muita elegância, ele o fez. Então, enfim, tomou lugar ao móvel de ferro.

　　　Numa ponta, ele; noutra, ela.

　　　— A Viperina Ametista à minha frente — disse o velho. Juntou as mãos diante dele, sobre a mesa, formando um campanário. — Ou devo dizer: Watanabi Haru. — A voz grossa saía em tom provocativo.

　　　Haru permanecia imóvel, de cabeça baixa.

　　　— Sei que está acordada. O efeito do soporífero que administramos deve continuar retardando seus sentidos por mais algum tempo — ele continuou. — Durante esse tempo, apenas ouvir já basta.

　　　Uma pausa. Limpou a garganta antes de prosseguir.

　　　— A propósito, sou Nagamine Yozo, General da Divisão de Inteligência do Exército da Água.

Considerações:

　　　Yozo pausou novamente.

　　　Ele perscrutava a Viperina, depositando uma atenção cheia de obstinação. Apesar do esforço em manter a guarda, começava a respirar mais aliviado. Inspirou profundamente, e nisso tragou uma fragrância floral que despertou-lhe a curiosidade devido ao contraste com o ambiente: o que um perfume tão doce fazia numa câmara fria como aquela?

　　　Observou os feixes demasiadamente lisos e de brilho violeta que pendiam da cabeça de Haru. A fragrância harmonizava com eles. É daí que esse perfume se desprende?, indagou-se o velho general. Depois de alguns segundos, ele se percebeu detido na beleza sutil de tal combinação.

　　　O aroma aprazível foi como a alavanca de uma armadilha: envolveu-o numa distração, uma bela distração. E lá ele ficou, completamente cativo, até acordar após um transe de poucos segundos — mas que numa guerra seria fatal, a experiência o advertia.

　　　O general Nagamine balançou a cabeça, livrando-se da estranha hipnose. Não posso me permitir um descuido desses, afirmou para si mesmo. Limpou a testa com um lenço que retirou do uniforme; sentiu as rugas do cenho, lembrou-se dos anos de guerra.

　　　Ele respirou fundo novamente para prosseguir.

　　　— Eu irei pular o resumo dos acontecimentos que nos carregaram até esta situação. Deve saber muito bem dos processos desencadeados pelo ato infame do Mizukage de vocês. — A voz do oficial ganhou nuances de ira, mas logo se acalmou.

　　　Yozo continuou:

　　　— O que quero tratar, agora, são as consequências que muito tardaram para acontecer. Você, senhorita Watanabi, mexe com práticas que foram condenadas e varridas do País da Água: a ciência!

Considerações:

　　　O temperamento do velho e rígido general era como uma maré prestes a ganhar turbulência: pequenas ondas de raiva subiam no timbre de sua voz, mas em sequência desabavam numa calmaria controlada. Havia a sensação de um tsunami em iminência.

　　　— Pensou que ficaria impune, não é mesmo? Vocês… essa gentinha... sempre achando que estão por cima, se esquecem que são apenas uma gota num manancial — ele quase rosnou. Os dentes rangeram de leve. — Mas isso vai acabar. Você está condenada. E sua linhagem, o sangue de Consílio, de nada vai importar. Nem mesmo seus pais, com toda a influência que detêm, conseguirão sequer diminuir sua pena.

　　　Ele a fitou com fúria no olhar. E a imobilidade dela, a serenidade do corpo de porcelana, só dava mais combustível para a conflagração da raiva do maturado general.

　　　— E você, escute bem — continuou o Nagamine —, você só não morreu ainda porque servirá de exemplo para sua gente, será como um espantalho. A primeira coisa que…

　　　Haru se mexeu.

　　　A cabeça meneou de leve, mas foi o suficiente para fazer os fios tremeluzirem com aquela cor de violeta flagrante. O oficial arregalou os olhos. E ela balbuciou alguma coisa ininteligível.

　　　— Ora, já vai conseguir falar? — disse Yozo, sorrindo ardilosamente. — Ótimo! Assim poderá responder algumas perguntas antes mesmo do que eu imaginava.

　　　Conforme ele comprimia a visão para focá-la, as rugas se estreitavam nos cantos dos olhos: uma moldura engelhada contornava o olhar inquisitivo do velho general.

　　　— Responda-me: o que levou você a continuar tocando suas pesquisas, a continuar contribuindo com a ciência? — O maldito sorriso ardiloso continuava. — Fique tranquila, no seu tempo.

Considerações:

　　　Haru murmurou mais alguma coisa. E seu murmúrio ganhou forma, transformou-se num sussurro:

　　　— Esse… é… meu objetivo. — As palavras saíram de sua boca com dificuldade. — A… tentação suprema… de uma cientista.

　　　— Acha que sua "tentação suprema" é suficiente para sobrepujar as ordens do Daimyō, os decretos que regem todas as ilhas do arquipélago? — Havia um quê de impaciência na fala de Yozo. Dessa vez, ele não estava muito disposto a esperá-la responder.

　　　— Eu… — a Watanabi sussurrou de novo.

　　　Haru voltou a mexer a cabeça. Soergueu o queixo fino. Logo abaixo da franja de cabelos escuros, os olhos do violeta mais puro e impressionante se revelaram. Reuniu forças para encarar seu inquisidor, e ele sentiu o olhar afiado que ela lhe lançava. Havia uma letalidade serena, velada sob a cor de lavanda.

　　　— … disse que era suprema, não disse? — a cientista reafirmou.

　　　Um lampejo de fúria passou, rapidamente, pelo semblante do general. Quanta insolência, ele pensou. Por um triz o Nagamine não perdeu a compostura. E, num insight, sua experiência o alertou de mais coisas: a garota estava estudando-o com aquele olhar quase místico, fisgando cada deslize.

　　　Percebeu-se engolindo em seco para desobstruir a garganta na tentativa de não gaguejar; parecia que nem o timbre de sua voz passaria ileso pelos intensos orbes violeta. Isso também alimentou sua ira: a sensação de ser sobrepujado.

　　　O general Nagamine empertigou-se como fez quando entrou na câmara. E, com um ar de fúria retraída, disse:

　　　— Foi essa insolência que a trouxe a esta câmara!

　　　— Foram seus soldados que me trouxeram a esta câmara — rebateu Haru. Foi de imediato.

Considerações:

　　　— Você — agora Yozo rosnou — está aqui porque teve a audácia de ignorar os decretos do nosso Senhor Feudal. Continuou com seus experimentos infelizes debaixo de um subsolo, feito uma rata. E ainda se declarou como Cientista Chefe!

　　　— Fui nomeada. A autodeclaração é para tolos.

　　　— Cinismo! Saiba que tudo o que diz é registrado e aumentará sua pena. — As palavras saíram entre dentes. O general avaliava a garota, já agoniado com a placidez dela. Questionava-se se poderia atribuir essa quietude aos efeitos do soporífero.

　　　— Não sou realmente uma cínica. Eu analiso e exponho a verdade — disse Haru, numa serenidade implacável. — E é este o papel de um cientista: expor a verdade, a realidade mais crua possível da natureza.

　　　Yozo fez menção de responder, mas, hesitante, se calou. Notou que, em algum momento daquela inquirição, o rosto de fada de Haru havia sido erguido por inteiro, e os ombros minguados haviam sido aprumados. Achou perturbador não ser capaz de dizer quando a postura da Viperina Ametista se tornou ereta e altiva.

　　　— É mesmo? — grunhiu o general. — Então, me diga: que verdade você tira deste nosso encontro, senão a punição iminente de uma jovem desordeira?

　　　— Um homem que se deixou levar pela raiva — disse Haru, calmamente — e que, por isso, sequer percebeu que está incapacitado de mexer até mesmo os dedos.

　　　Do que ela está falando?, perguntou-se o Oficial. Ele arregalou os olhos, arrebitando as rugas do entorno de seu rosto que acabava de ficar pálido, assustado. Foi então que ele tentou mexer as mãos, afastar os dedos que juntara assim que sentou-se à mesa. O resultado foi temeroso…

　　　Com muito, muito esforço, conseguiu uma distância de apenas milímetros entre cada dedo.

　　　— Mas… o que… — balbuciou Yozo. — O que você fez?!

Considerações:

　　　— Farejei o medo que você sente pela Névoa — respondeu Haru. — Apenas me aproveitei disso para instigar sua raiva, o sentimento que você encontrou para se proteger do medo, de forma que fosse incapaz de observar a dormência que se apoderava de seu corpo.

　　　O oficial Nagamine, tremendo o queixo, pegou-se com a visão perdendo o foco, embaçando como se atravessasse uma neblina que gradativamente se adensava.

　　　— Diga… o que você fez! — ele latiu.

　　　— O soporífero que me introduziram, eu o alterei — disse Haru, prontamente. — Inseri em sua fórmula alguns componentes dos venenos que tenho selados em meu corpo. Tornei-o mais pujante e o dispersei por esta câmara.

　　　Apesar de, a princípio, não conseguir acreditar no que ela dizia, por ser algo inconcebível para a mente de Yozo, ele viu a víbora no olhar de Haru: a plenitude ardilosa de quem confessa um crime, de quem fala a verdade. Ocorreu-lhe, então, a súbita lembrança daquele estranho perfume doce de notas florais.

　　　Era o maldito perfume, o veneno.

　　　O velho general teve a derradeira constatação de que não era o caçador; era a caça. Não estava mais na câmara de proteção do Forte da Água; estava no covil de uma serpente muito arguciosa.

　　　Com o resto de força que tinha, Yozo berrou:

　　　— Guardas!

　　　Dois borrões tremeluzentes mancharam o ar nas laterais da Viperina Ametista. De invisível para visível, os borrões esculpiram dois soldados. Trajavam uniformes especiais da Água: as cores eram as mesmas, branco e azul-marinho, mas o tecido parecia um tipo de malha; fivelas corriam pelos ombros para sustentar o cilindro que havia nas costas; ostentavam máscaras de oxigênio na face, que além da proteção nasal ofereciam óculos herméticos.

　　　Rangendo os dentes, Yozo cedeu um sorriso truncado que curvou-lhe as dobras em torno dos lábios. Ele sentiu alívio ao ver os soldados, devidamente preparados para lidar com a reputação que seguia Haru, avançando contra ela com as lanças de guerrilha de sua tropa.

　　　Eu posso não ter percebido seu veneno, ele pensou, mas não quer dizer que também não me precavi para o nosso encontro, Viperina.

Considerações:

　　　Em riste, as lanças se projetaram contra a garota. Um golpe de precisão e violência: era para matar. A poucos centímetros de atingi-la, as pontas metálicas tilintaram ao se aproximarem do pescoço lívido.

　　　E os homens de Yozo pararam. Uma parada brusca.

　　　O olhar do general, arregalado pela tensão, perdeu o brilho de orgulho e se tornou uma janela escancarada para o que ora dominava sua mente: pavor. Suas pupilas tremeram, tentando buscar o que aconteceu para que seus soldados interrompessem um ataque tão certeiro no meio do trajeto. Não seria possível que o veneno de Haru tivesse penetrado o traje especial, ele pensou.

　　　Foi então que o Nagamine ouviu um silvo de serpente.

　　　O torpor do narcótico de Haru tomava-lhe os olhos, mas, ainda assim, forçou-se para enxergar através da névoa que embaçava sua visão. Quando alcançou um certo grau de nitidez, ele se arrependeu da tentativa.

　　　Duas cobras grandes de escamas brancas se rastejavam pelo corpo dos soldados, constringindo-lhes os membros. Por fim, testemunhou o momento exato em que as duas víboras abocanharam seus guardas, um bote tão preciso e violento quanto o assalto das lanças, cravando as presas nos pescoços e destruindo o traje especial.

　　　— C-como? — gaguejou o oficial, perdendo toda a pompa.

　　　A turva imagem que seus olhos conseguiam lhe oferecer captou a Viperina Ametista levantando-se da cadeira; os braços devidamente soltos e descansados.

　　　E a voz dela soou logo após mais um silvo de serpente.

　　　— Nunca estive presa, Sr. Nagamine. Eu quis este momento, neste lugar. Assim posso despejar o veneno direto na jugular do exército.

　　　— Vo-você… Não pense que me matando vai conseguir o que quer! O Exército da Água… e-ele… não cairá!

　　　— Não hoje. Mas você está certo: te matar não trará o que quero. É com você vivo.

　　　A imagem enevoada e violácea se aproximava dele, deslizando os dedos pela extensão da mesa de ferro. Ela continuou sibilando:

　　　— Sua vida é um potencializador para o meu veneno. Ela mostra a clara incompetência da Água, das escolhas de vocês. E este momento, bem aqui, no Forte, mostra que não serão capazes de combater a Névoa. A dúvida vai contaminar a população: vão se questionar sobre quem está certo, sobre quem tem o real poder…

Considerações:

　　　— Basta! — vociferou Yozo.

　　　— Não adianta, Sr. Nagamine. Minha peçonha já corre pelas veias.

　　　A garota havia chegado muito perto, ele constatou, observando como crescia a imagem da víbora violeta no borrão que era sua visão — as pálpebras, já tão cansadas pela idade avançada, tiritavam com o esforço de reaver o foco.

　　　Sentiu que ela o tocava, surrupiando algo de seu uniforme: o sentimento foi muito mais espiritual do que físico, pois o narcótico havia reduzido drasticamente a sensibilidade de seu tato.

　　　— Ficarei com o soporífero, um espólio para a Névoa. — Yozo escutou de Haru, a voz mansamente sibilante. — Também pode servir de ingrediente para um composto mais interessante.

　　　Um ranger metálico ecoou.

　　　O velho general o reconheceu: era a pesada porta que se abria. Passos apressados pisoteavam o chão em ritmo ordenado, marchavam com pressa e vigor, um batalhão que se estendia para além dos dois cães de guarda da câmara.

　　　Yozo, já cedendo ao peso do próprio corpo e debruçando-se sobre a mesa, falou com dificuldade:

　　　— Não… escapará… facilmente… — A última palavra escapou sem som, houve apenas o movimento truncado da boca enrijecida.

　　　— Poupe os músculos, general. Quanto mais se esforçar, mais lenta será a recuperação. — A voz de Haru soou longe.

　　　Nisso, Yozo constatou que sua audição começava a se prejudicar também. A letargia da toxina dominava-lhe os cinco sentidos.

　　　Antes de apagar, sucumbir ao veneno, a última coisa que o velho general escutou foi:

　　　— A Névoa se mantém erguida.

　　　E que viu: o vulto violeta da Viperina afundar-se no chão feito um espectro, que desaparece deixando apenas o medo instalado na mente daqueles que o testemunharam.

Considerações: