Meus dedos pressionavam o pincel enquanto a ponta deslizava pelo pergaminho, gravando com tinta preta palavras difíceis de serem escritas. Não por sua gramática, mas pelo teor do conteúdo. Afinal, não escrevia para qualquer um: Warui havia se tornado alguém importante, consolidado no cargo, pelo que me lembro, há quase três anos. Então, quem leria minha carta? A grande e orgulhosa sombra da névoa ou o garoto impaciente e fechado que conversou comigo fora da tenda naquela bela noite numa época que parece estar muito mais longe do que realmente está? Esse mesmo garoto, tempos depois, se tornaria a tempestade sombria e também um grande aliado com quem eu dividiria grandes feitos em campo. Ainda assim, o tempo muda as pessoas - mesmo as melhores delas. Mas tomara que não ele.  

　　  　　“Prezado garoto-tempestade”, fiz um risco no nome e continuei escrevendo em seguida: “...Grande mizukage-sama, soberano entre os mortais”, agora sim. Sorri, imaginando-o lendo a reverência. “Ainda tem aquela shuriken que te entreguei no País das Ondas? Eu disse que poderia encontrá-lo onde quer que estivesse enquanto portasse aquela marca. Eis que hoje peço para que tal encontro aconteça, pois vejo o mundo cada vez mais cinza e seria bom conversar com um velho amigo. Não quero uma conferência com a Sombra, entenda, tampouco ser um estrangeiro a entrar em seu vilarejo de forma oportunista. Leve a shuriken até algum lugar bonito desse seu país sem graça na próxima lua minguante, e quando ela estiver alta sobre o céu o melhor ninja da folha surgirá na marcação. ps: caso não a tenha guardado, essa carta também conterá um selo de teletransporte, mas eu vou ficar muito ofendido”.

　　  　　Enrolei o pergaminho e por fim cravei minha assinatura no verso, um grande e simples “XIII” descrito. Da minha mesa no quartel general, chamei um chuunin e lhe entreguei a carta para que se encarregasse de levá-la até o posto de correio aéreo e a enviasse.

　　  　　A lua não demorou mais que uma semana, mas ainda assim era tempo de sobra para que Warui se preparasse para minha chegada. Esperei o passar dos dias ansioso com a viagem, então quando a hora de me movimentar até a marcação se aproximou, me posicionei sobre o telhado de madeira do dojô. Fiquei ali por alguns minutos, admirando o luar prateado e contando as estrelas. Seria o céu do país da água tão diferente assim? Talvez descobrisse em breve. Com a lua no meio do céu, como prometido, me teletransportei.

　　  　　Um salto. Outro país.

　　  　　─── Tcharan! Eu disse que viria, não disse?
　　  　
   

　　  　   　Onde antes a lua de luz fraca projetava nas brumas apenas o pequeno borrão sombreado de uma shuriken rodopiando no ar, agora era possível ver a silhueta de meu corpo estendendo-se pelo chão até que meus pés tocassem o solo. À quem olhasse de baixo, entenderia a perspicácia de Warui ao lançar a kunai no exato momento em que a lua escorou-se na metade exata entre os dois céus, leste e oeste. Sorri, grato pela oportunidade, curvando-me numa leve reverência como um artista que acaba de apresentar seu número. E lá estávamos nós, no próprio território da Tempestade, então me aproximei em passos calmos até ele.

　　  　   　Sabe, foi uma longa viagem da Folha à Névoa. Pode ter acontecido num instante, mas pra mim, que viajava entre o tecido do espaço-tempo, ouso dizer que demorou um longo suspiro. Tempo suficiente para, nostálgico como me sentia agora, lembrar de como aquele garoto de olhos borgonha havia crescido com o passar dos anos. Não só no sentido de estatura, claro, mas ele realmente tinha se tornado alguém Grande. Vi-o, muito novo, inflexível como metal mal fervido. Então o vi aos cacos, mas estive certo de que faria o que fez: juntou-se e renasceu como alguém melhor ainda, mais forte, imponente. A vida tratou de nos ensinar à duros modos que ela não é como nos sonhos de alunos da Academia, e seja qual cor você vista, seu trabalho vai sempre cheirar a sangue e mijo.  

　　  　   　Mas não se engane. Eu adoro essa vida. Existiam refugos, momentos memoráveis, frações que fazem toda essa loucura valer a pena. Um bom exemplo é que na invasão às Ondas, independente de qualquer resultado, lembro-me do sorriso de adrenalina ao invadirmos o lugar, passarmos pelas defesas, irrastreáveis, e, claro, mesmo antes da luta contra nossos antigos kages, de vê-lo explodir aquele quartel general com uma força elétrica que soava estrondosa como um prelúdio do fim dos tempos. Esses éramos nós, seres que sobrevivem em situações caóticas e que muitas vezes não podemos contar com mais ninguém além do combatente ao seu lado. E a guerra, claro, é capaz de formar laços difíceis de serem entendidos.

　　  　   　O Rokudaime estendeu seu braço e eu o correspondi levando meu ombro ao seu encontro sem me preocupar em ser invasivo. Estava nítida a minha alegria. Olhei-o nos olhos, era bem mais alto que eu, e soltei sua mão para buscar no bolso interior do paletó carmesim bordado com rosas um maço de cigarros amassado e um isqueiro de metal cobreado. Mostrei-o, como quem oferece um, e descansei o objeto no meu lábio inferior, os olhos agora voltados para a paisagem.

　　  　   　─── É bom vê-lo bem, Warui ─── falei sem retirar minha atenção do lago que se estendia, maravilhado com a vista. Traguei demoradamente e soltei a fumaça que se perdeu na névoa ─── É bom poder ver um rosto amigo. Lembra do que eu disse quando ainda éramos crianças? Pra se divertir no processo? Tsc, eu tenho sido péssimo em seguir meu próprio conselho.

　　  　   　Ele era o Rokudaime, a respeitada Sombra de uma nação. Eu sei, ele não precisaria ouvir desabafo algum, mas soava razoável quando me lembrava da maturidade de nossa amizade. Dele, hoje, necessitava de conselhos.

　　  　   　─── As coisas não estão indo bem na Folha, cara. Vivemos cercados por inimigos sem rostos, fantasmas que deixam mensagens de destruição por onde quer que passem. As pessoas estão com fome, camponeses se refugiam cada vez mais em nossos muros e temos dividido nossa pouca comida que consegue ser entregue por mercadores ou conservadas em fazendas bem vigiadas ─── outro trago, outro momento para escolher as palavras ─── Mas não é isso que mais tem me atormentado. Preciso que me diga, Warui,

　　  　   　O que é ser um Kage pra você?