Este tópico trata-se da continuação da Quest Para Além do Espírito e é onde ocorre a progressão da profissão de Haru.

O CHEIRO DE ÉTER começava a incomodar Haru. Não só isso, havia também o odor de produtos de limpeza usados em excesso e alguma substância a mais que se perdia no meio de tantas outras, mas que causava uma aflição aguda em especial. Sentia o pequeno nariz irritado e a garganta constringida.

　　　Agora isso estava tão presente em seu cotidiano!

　　　Ocorreu-lhe, então, a lembrança do doce aroma de sua floricultura-laboratório; de imediato, desejou estar lá. Porém, deveria se conformar com o lugar de seu presente: o Hospital da Névoa. E sua função ali dentro, que não era mais voluntária, passageira. Sendo uma estagiária, teria ainda de passar por algumas luas até se tornar médica o suficiente para ter sua própria clínica — e perfumá-la da forma que prefere: com fragrância de flores.

　　　— Srta. Watanabi — disse sua supervisora, a médica Yumi Ito —, viu como preparar um registro de anamnese?

　　　— Sim, Srta. Ito — respondeu Haru, prontamente.

　　　Abraçou a prancheta, mas com cuidado para não amassar a folha que detinha os dados do último paciente. E pensou: Mesmo sendo sua estagiária, Yumi continua me tratando com a formalidade de um superior, como se estivéssemos no mesmo patamar. Sua mente era treinada na arte da observação: ela captava, mesmo sem desejar no plano consciente, o que via e ouvia de maneira a decodificar as inconfidências veladas. Ela me vê além do hospital, como a cientista que sou.

　　　— Venha — chamou Yumi. — Quero sua ajuda na manipulação de alguns fármacos. Vou ensiná-la a preparar um composto simples, mas que detém um princípio ativo presente em muitos medicamentos.

　　　Haru sorriu genuinamente.

　　　— Então, ao laboratório? — disse ela, com um quê de entusiasmo bem nítido em seu timbre.

　　　Yumi anuiu lentamente com a cabeça. — Ao laboratório. — E ajeitou os óculos.

　　　Andaram pelos corredores. A cada passo, o coraçãozinho da Watanabi palpitava. Finalmente chegaria ao ansiado ponto de participar de produções no laboratório, ela pensava.

　　　No meio do caminho, a Ito deixou escapar:

　　　— A depender do seu resultado, irei te promover a clínica geral. Portanto, não me decepcione.

　　　E Haru não a decepcionou.

Considerações:

— SEUS RESULTADOS NA ELABORAÇÃO de fármacos são impressionantes, Srta. Watanabi — disse Yumi, ajeitando os óculos de armação pequena e circular. — Dignos de uma médica experiente.

　　　Haru observou sua supervisora, a Chefe do Hospital da Névoa, Yumi Ito. Os cabelos de cor lilás atirados às costas, amarrados num único laço à altura da nuca: feixes de brilho levemente azulado, muito intrigantes.

　　　Fez um sorriso com os lábios finos, forjando um contentamento que, na realidade, não existia. Sou cientista, pensou Haru. Yumi sabe que sou. Então, por que pontuar tal coisa? A manipulação de agentes químicos é natural para qualquer cientista.

　　　Yumi finalmente tirou os olhos do microscópio, da amostra que encerrava o último fármaco produzido em conjunto com a kunoichi de olhos violeta. No instante que se seguiu, a Viperina pressentiu os pensamentos que se formavam na cabeça da médica: ela divagava, ela sabia.

　　　Um suspiro resvalou pela boca avermelhada da supervisora.

　　　— Seu talento e entusiasmo tem muito a oferecer ao hospital, à Névoa como um todo…

　　　Haru arqueou as sobrancelhas, que quase sumiram debaixo da franja de fios escuros. Ela esperava pelo "mas" que viria a seguir, velado na hesitação de Yumi: a pausa sutil entre as informações… Informações, como eram valiosas para a jovem cientista.

　　　— Chegou a hora de lhe ensinar os preceitos do ofício — continuou Yumi, ocultando o "mas".

　　　Haru fisgou esse detalhe. O que ele significava? Ela analisou e pensou… O raciocínio computacional dividia várias hipóteses e as trabalhava quase que em paralelo. O resultado, por fim, foi: Yumi está prestes a me dizer algo sobre o qual presume que eu não tenha conhecimento. Algo inédito. Algo que só os médicos mais aprofundados sabem…

　　　O que é?

　　　A pergunta martelou incontáveis vezes na cabeça da kunoichi antes da Dra. Ito falar, durante o mísero intervalo de tempo entre as informações. O entusiasmo ficava nítido no semblante porcelânico da Vipera: a origem dos ecos em sua mente.

　　　Depois de encher os pulmões, Yumi disse:

　　　— Mas…

　　　Aí estava ele, pensou Haru. Atrasado, porém, o que significava uma finta a mais para dar corda às marteladas no cerne da kunoichi violeta.

　　　— … antes quero que me responda uma pergunta: Srta. Watanabi, você já recusou suas habilidades curativas a alguém?

　　　Um lampejo, belo e efêmero, piscou nos orbes violáceos. Haru vislumbrou — com todas as atribuições da palavra — a finta que despontava da pergunta da Chefe do Hospital.

　　　Um questionamento de ordem essencial, ela ponderou. Um teste sobre um teste, verdadeiro e necessário; sem o ardil de uma finta de batalha.

　　　Recordações, então, vieram à mente dela. Momentos decisivos. Na Névoa, nas Ondas, na Nuvem…

　　　Haru suspirou.

　　　— Nunca, Srta. Ito — ela respondeu.

　　　Yumi meneou lentamente a cabeça. E disse:

　　　— A primeira regra de um médico: jamais recusar tratamento a pessoas feridas.

　　　Nesse exato instante, Haru teve a súbita compreensão sobre o que se tratava o ofício. Era mais do que a manipulação de fármacos ou o entendimento de técnicas curativas: era sobre conduta.

　　　A jovem anuiu com um breve inclinar da cabeça.

　　　— Estando ciente da principal diretriz — disse Yumi, com um sorriso —, você está pronta para se tornar uma Residente. Quando for a hora, ensinarei as demais.

　　　Por fim, Haru também sorriu.

Considerações: