I




Havia deixado a capa jogada sobre sua cadeira diante da mesa de madeira com duas pilhas de papel. Prendia seus longos cabelos negros num rabo de cavalo e deixava a brisa carregada com o cheiro de chuva que invadia pela janela do gabinete tocar-lhe o rosto como uma carícia. Respirou fundo e tomou um gole de seu café que aquecia a mão direita, a temperatura era tal que conseguia ver o vapor com clareza, ao menos, o clima está agradável.

　　Os dias passados da batalha contra a grande besta com cauda alternaram agitação e uma busca intensa por mais poder e a calmaria tediosa dos afazeres burocráticos de uma Sombra. Virou um tanto contrariado na direção da papelada, pousou a porcelana sobre madeira e suspirou longamente antes de pegar a caneta outra vez.

　　Dois toques na porta o fizeram sentir-se grato, mas sua expressão permanecia serena. Correu os olhos na direção da porta, embora já soubesse que alguém se aproximava, a assinatura não lhe era muito familiar. Já a percebi pela aldeia, mas não consigo associá-la a um shinobi em específico.

　　— Entre. — disse em tom firme, esperando o ranger da porta revelar a figura.

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II




　　Viu a maçaneta girar antes de a porta abrir e revelar um rapaz muito alto de cabelos crespos, pele negra e uma máscara que cobria a metade inferior do rosto. O outro curvou-se por uma vez, mas parecia tão tomado pela tensão que reverenciou uma segunda. O Sexto arqueou uma das sobrancelhas achando alguma graça naquilo, ainda que jamais tivesse feito questão de cumprimentos com demasiada formalidade.

　　— Com licença, senhor. — a voz dele encerrou sua quietude. — Tenho um pedido pretensioso para fazer.

　　Eu o conheço, os dedos se entrelaçaram a frente dos lábios pouco após ele começar a falar. A estatura, a cor da pele, a espada que carregava presa à sua anca. Ele cerrou os olhos e a visita tornou-se um tanto mais interessante naquele momento.

　　— Prossiga... — fez uma breve pausa, ainda mantendo a boca tapada pelas mãos. — ...Asura Tenzō.

　　Era comum Warui analisar os perfis dos shinobis que concluíam as missões cujos relatórios chegavam até si. Mentalmente, ele guardava cada rosto que lhe entregava uma tarefa complexa cumprida com sucesso e posteriormente fazia uma pesquisa pessoal a respeito do indivíduo.

　　Este, no entanto, vem de uma linhagem interessante; o garoto a sua frente pertencia a um clã que carregava o sangue dos demônios em suas veias. As palavras escaparam os lábios do rapaz em seu pedido audaz. Os caçadores da Névoa são considerados membros da elite do vilarejo e tem uma proximidade grande com o Sexto, não costumava acatar pedidos diretos como aquele. Porém, parecia que os nomes que vinham procurá-lo ultimamente eram sempre os certos.

　　— Não precisa se curvar. — interrompeu, antes que o garoto fizesse mais uma reverência. — Se deseja se tornar um caçador, saiba que estará prestes a lidar com missões muito mais complexas que as que viveu até aqui e irá conhecer um lado ainda mais sombrio do mundo que vivemos. Não irei me opor ao seu pedido, ainda que não nos conheçamos pessoalmente, eu sei quem você é. — enfatizou as últimas palavras propositalmente. — Escolho meus caçadores não apenas por suas habilidades, mas também pela lealdade a aldeia. Se conspirar contra a Névoa, serei eu mesmo a cuidar do assunto.

　　Warui endireitou sua postura na cadeira, oferecendo um olhar calmo para o chunin.

　　— Está de acordo?

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III




　　Então, é poder que ele deseja, sua mão direita apanhou a caneca de café pela asa e levou a porcelana até os lábios. Virou um belo gole e deixou a bebida lhe aquecer o peito e amargar a língua com aquele sabor que era quase um vício. Encostou o objeto calmamente sobre a madeira outra vez, mantendo as palmas de ambas as mãos em volta para que o calor tocasse sua pele por mais algum tempo.

　　O breve relato do chunin quase o fizera viajar de volta para o dia de sua própria tragédia, mas optou por ficar em silêncio e reprimir as lembranças. Quanto mais o outro falava, mais ele tinha certeza de que seria capaz de compreendê-lo melhor do que muitas pessoas na Névoa; gente assim estranhamente parece simplesmente ser atraída até mim. O garoto demônio não hesitou em concordar com as condições do Sexto, que o mirava diretamente nos olhos.

　　— Neste fatídico dia de que falou, você sentiu medo ou fora raiva de si mesmo por não ser forte o bastante? — a pergunta ecoava num tom de voz brando, ainda que as palavras fossem um tanto pesadas. — Irei providenciar um exame de admissão para você, mas não lhe direi quando irá acontecer.

　　Um segundo ranger da porta o interrompeu, mas desta vez Warui sabia muito bem quem se aproximava, já havia sentido sua presença há algum tempo. Sua nova assistente parecia perdida quando seus olhos se encontraram, ouviu-a balbuciar seu nome e já fazia algum tempo que passara a achar graça nestes pequenos detalhes que podia reparar desde que a nomeou.

　　— Perdão entrar assim. É que trago assuntos importantes para tratar com o Mizukage.

　　— Você é minha assistente, Haru. Não precisa se desculpar. — respondeu, fixando sua atenção naqueles doces olhos violeta. — Além do mais, eu e...

　　Voltou seu rosto calmamente para o do rapaz. Era estranho como a simples presença dela o desconcertava sem que ao menos percebesse. Fazia tempo que um nome que ouvira há poucos segundos lhe fugia a mente como agora, mas era algo que acontecia com alguma frequência quando a Watanabi estava por perto.

　　O Sexto franziu o cenho ainda encarando o grandalhão naqueles orbes cor de noite.

　　— Tenzō, — disse, com um certo entusiasmo por ter se lembrado. — creio que já tenhamos nos resolvido. Ou deseja algo mais? — o líder ofereceu a palavra ao garoto demônio outra vez.

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IV




　　O garoto demônio se mostrava uma figura interessante para o Sexto. A carcaça robusta esconde um menino frágil ainda, cada gesto do rapaz era cuidadosamente analisado: o nervosismo, os anseios, as dúvidas – nada passava batido. Os dedos se abraçaram outra vez cobrindo a boca da Sombra, como ele sempre costumava fazer quando dava atenção demasiada a qualquer coisa que lhe despertasse interesse.

　　Ele sabia que não teria errado em deixá-lo mergulhar no mundo dos caçadores.

　　— Esta resposta não é fácil de encontrar. — disse, em um tom de voz suave como uma brisa de inverno. — Nos veremos outras vezes, garoto. — limitou-se, guardando no sossego de seus pensamentos o quão em comum os dois possuíam.

　　A presença da ametista mudou um pouco o tom do diálogo; muito embora o rapaz tenha parecido ficar ainda mais tenso, Warui podia sentir o ambiente mais leve. O segundo pedido inusitado fora respondido com um simples menear da cabeça na direção de sua assistente e então ficou admirando a cena, subitamente mergulhando numa memória que mesclava sentimentos.

　　Na primeira vez que viu a menina, era pequena e delicada como uma boneca de porcelana. Ela parecia confiar pouco em si mesmo, a lembrança de uma ainda mais jovem Haru salvando a vida de Ichika quase lhe arrancou um sorriso bobo ao contrastar com a imagem de sua atual assistente e cientista chefe da Névoa. Seu semblante, no entanto, permaneceu imutado: como os céus de ardósia que forravam o vilarejo.

　　O grandalhão se desconcertou outra vez, exagerando nas reverências. Acho que preciso me acostumar, ele quase dava-se por vencido, as formalidades eram inerentes às Sombras, ainda que eu seja uma Tempestade.

　　— Pode ir, — disse, logo após anuir em resposta para o outro. — e boa sorte quando a hora chegar.

　　Os passos pesados do espadachim o levariam para longe do gabinete, deixando Warui e Haru a sós. O tom pesaroso da ametista era compreensível, a lua havia se tingido em carmesim e certamente era obra do falso deus. Uma sugestão válida era trazida pela cientista, ele manteve-se em silêncio por alguns segundos, mergulhado naqueles doces olhos violeta.

　　Não pretendo me aliar a uma nação com lideranças frágeis como a Pedra e a Folha; ele estava decidido desde antes da batalha contra a besta de dez caudas. Ouvira falar que a Areia também teria trocado sua liderança, porém um velho conhecido tomara o chapéu: o cachorro barulhento da Areia da primeira reunião.

　　— Mas, antes, — a Watanabi ainda não havia lhe passado a palavra. — temos que por um fim em algumas urgências da Névoa: a nossa própria fase sangrenta. Um período que já se arrastou demais.

　　Baixou o olhar calmamente, fitando sua mesa com papéis empilhados à sua esquerda e à direita. Levou a caneca com o restante de café até seus lábios e virou tudo, apreciando o fim daquele amargor levemente adoçado com um cubo de açúcar. A queimação em seu peito era prazerosa, arrancando-lhe um suspiro antes de pousar a porcelana sobre a madeira uma última vez.

　　— Em breve, pretendo ir até a Nuvem ver como estão as coisas por lá. E talvez, — seu olhar ganhou contornos sombrios, como se a ideia pouco o agradasse. — me encontrarei também com a nova Sombra do País do Vento. — seus olhos se prenderam nos dela quando as últimas palavras foram sopradas. — Quanto aos nossos problemas, eles se resolverão naturalmente. Afinal, tenho você... — fez uma pausa breve, percebendo que estava se perdendo aos poucos na delicadeza dos grandes orbes violeta. — ...Ovelha e a arqueira de cabelos de fogo. — tentou disfarçar, temendo a falha. Ela dificilmente não notará. — As alianças com outras nações podem ser benéficas para resolvermos nossos próprios problemas.

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V




　　— Era isso, Warui.

　　A voz dela soara calma a todo instante, como se tivesse ido até lá tratar de assuntos simples de resolver. Seu olhar se agarrava no dela a cada vez que os finos lábios da pequena se moviam e as palavras escapavam bem escolhidas como se a ametista pensasse cuidadosamente em cada uma delas. Para ela, é natural como respirar formular ideias mesmo que sejam complexas, é como se ela conseguisse planejar até dez movimentos adiante em segundos, sempre se encantou com o quanto a Watanabi o fazia lembrar sua mestra.

　　Sua assistente não mostrou-se relutante em firmar uma aliança com a Nuvem e nem mesmo com a Areia; a antiga Sombra, no entanto, era quem mais o preocupava. O nome da menina foi mencionado e seu cenho franziu em um reflexo involuntário.

　　— A despeito de como o atual líder chegou ao poder, a garota que liderava na última reunião estava ligada de alguma forma ao falso deus. — pode sentir seu olhar ganhar tons sombrios enquanto encarava Haru. — E ela não pareceu segura de qual lado deveria escolher.

　　Viu-a caminhar em sua direção com passos tranquilos entre um suspiro e outro, tomando o relatórios do último dos incidentes da Névoa Sangrenta. Talvez seja necessário derrubar todas as peças e não somente o rei, pensava enquanto acompanhava o fino dedo da cientista apontando para o ocorrido específico; ou talvez, o rei ainda não tenha se mostrado. A análise precisa era a leitura que ele esperava de uma gênia como violeta. Seus olhos correram na direção dos dela logo depois de ter se levantado da cadeira com a caneca vazia em mãos.

　　— Um destes pilares cairá antes, então. Focaremos nisso e o faremos juntos. — disse, caminhando na direção da porta e parando ao lado dela, podendo sentir de perto o doce perfume que sempre entregava sua chegada antes mesmo de se anunciar. — Temos muito a fazer, mas assim que tivermos algum tempo, eu pretendo cumprir a promessa que te fiz na Nuvem.

　　Seus passos o levaram para mais perto da porta e a mão esquerda tocou a maçaneta antes de girá-la. A madeira rangeu uma última vez e o extenso corredor até a copa se desdobrou diante de si. De costas para a Watanabi, ele tinha a certeza de que a pequena não notaria o suave enrubescer em suas maçãs; o Sexto, por outro lado, percebia a leve queimação e o coração acelerar quando voltava naquele assunto.

　　— Eu vou buscar mais café e terminar de analisar os relatórios. Está dispensada, mas sempre que quiser, entre sem bater. Você nunca irá atrapalhar nada.

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